domingo, 26 de dezembro de 2010

Em Vila Flor, de novo!

Fui colocado na Escola Secundária de Vila Flor, inaugurada 5 anos antes, no ano lectivo de 1989/90 e aqui trabalhei até ao ano lectivo de 1994/95. Este foi um período importante e determinante para a minha carreira profissional. Foi como que um despertar para a necessidade de consolidar a minha formação profissional e académica, frequentando diversas acções de formação e concluindo o Curso de Estudos Superiores Especializados, em Educação Especial.

Entretanto fui vivenciando experiências extraordinárias sob o ponto de vista pessoal e profissional e outras menos boas mas que também tiveram importância pois ajudaram-me a crescer, a conhecer-me melhor e, sobretudo, a conhecer melhor os outros.
Um dia, estava na Biblioteca da escola a preparar os tabuleiros de xadrez, as peças, os relógios e restante material para um pequeno torneio que tinha organizado para os alunos inscritos no Clube de Xadrez e não pude deixar de ouvir a conversa entre duas alunas e um colega da mesma turma.
A Cristiana, de 14 anos, dizia para a amiga e colega:
- Sabes o que aquele parvo me disse um dia? Apontando para o professor que viam passar através da janela e que subia em direcção ao bloco de aulas
- Aquele? Perguntou baixinho a Rosalinda, de 14 anos também.
- Sim! Segredou-me ao ouvido que tinha uma simpatia muito especial por mim!
- Como!? E que queria ele dizer-te com isso?
- À saída da sala 15, numa das suas últimas aulas antes de ter sido suspenso. Eu respondi-lhe que ainda um dia se iria arrepender do que me andava a fazer!
- Ele, de facto, era muito estranho e já não tinha “mão” na turma. É verdade que tinhamos alguns colegas muito insubordinados, que faziam muito barulho e ele fartava-se de gritar: “foda-se, estou farto disto, caralho, esta turma é uma merda”!
- Mas eu quero lá saber disso! - Retorquiu a Cristiana. A mim é que ele não me apalpa mais as mamas, senão vou mesmo dizer ao meu pai! Numa aula até me tocou “entre as pernas”! O porco!
- Sabes que a Ramaca também se queixa do mesmo? – e só tem 12 anos!... Ela disse-me que apenas deixou de a apalpar e de lhe dar beliscos a partir do momento em que soube que as alunas duma turma de 8º ano se queixaram dele ao Conselho Directivo. Parece que escreveram uma carta onde referiam que o professor contava anedotas “picantes” relacionadas com sexo e que tinha tentado apalpar algumas delas e apalpado outras.
- Pois! Ele fazia isso em quase todas as turmas. Também a Cristabela me disse, na cantina, que estava a pensar dizer ao pai – mas que tinha receio das consequências. “Se o meu pai sabe que ele me apalpa os seios sempre que pode e me acaricia o pescoço, é bem capaz de o matar!” 
O Castanho, que até aí se tinha mantido em silêncio, retorquiu:
- sabem o que ele me disse uma vez? Aquele kota de merda? Disse-me que eu não tinha tesão para as duas que estavam comigo - a Carla e a Joana. Enquanto me dizia isto ia metendo as mãos debaixo dos sovacos da Joana na tentativa de lhe chegar aos seios. Mas ela apertou os braços e não deixou. Para disfarçar perguntou-nos se tínhamos visto a telenovela brasileira “Pantanal”. Como não tínhamos visto ele passou a descrever, em pormenor, as cenas mais chocantes, sobretudo as que se relacionavam com cenas amorosas e que metiam sexo.
- E tu, que fizeste? Perguntou Cristana
- Eu!? Ouvi-o caladinho como um rato! Não me fosse acontecer o mesmo que ao Filipão. Num dia do terceiro período do ano passado, estava ele de pé junto à janela e o professor mandou-o sentar ao mesmo tempo que lhe perguntava se ia com os pais para a cama, quando estes iam fazer amor.
Como lhe retorquiu que os pais não eram para ali chamados, o professor, de imediato, pô-lo na rua dizendo que a partir daquele dia já estava chumbado por excesso de faltas.
E, de facto, assim aconteceu, chumbou mesmo. Este ano, o Filipão, matriculou-se na Secundária de Mirandela e veio duas vezes aqui à escola com o único propósito de furar os pneus da carrinha do Professor.
Se calhar é por isso que ele disse à Margarida, a namorada do Filipão, que qualquer dia lhe deitava as mãos às mamas que até a fazia andar de lado! Concluiu Rosalinda.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Carrazeda de Ansiães, 1988/1989

Quer vir tomar café?
Virei-me e olhei para o homem alto, forte e sorridente que me interrogava assim tão inesperadamente.
- Não se lembra de mim?
- Não! Confesso que não! Respondi embaraçado.
- Sou o Henrique Samorinha e fui seu aluno na Escola Secundária de Carrazeda de Ansiães.
- Pois! Isso já foi há tanto tempo e … ena … mudaste tanto!
- É verdade mas nunca me esqueci de si nem daquelas histórias que nos costumava contar nas aulas. Lembra-se daquela muito engraçada... a do frasco cheio?
Este encontro casual ocorrido recentemente numa cidade do litoral do País remeteu-me para o ano lectivo de 1988/89.
Após a profissionalização em serviço, concluída no ano lectivo anterior, concorri e fui colocado novamente em Carrazeda de Ansiães, mas agora na Escola Secundária, recentemente construída e inaugurada.
Foi apenas um ano lectivo mas gostei! Os alunos eram disciplinados e conseguimos estabelecer uma excelente relação.
Uma das minhas preocupações era, nessa altura e desde sempre, contribuir para a sua formação global orientando as aulas para a promoção de uma cidadania activa e para o seu desenvolvimento enquanto cidadãos participativos e críticos da sociedade, utilizando (sempre que possível) exemplos práticos do dia-a-dia para ilustrar as mensagens que queria passar e transmitir.
"Bem melhor do que ensinar o pouco que se vai sabendo, é abrir para a vastidão do que se desconhece."
Um dos exemplos que utilizava frequentemente para transmitir valores e atitudes correctas, era exactamente o do “frasco cheio”. Hoje em dia, pela disseminação da informação e do conhecimento através da internet, esta estória é bem capaz de ser conhecida mas a mim foi-me transmitida, muitos anos antes, por um professor que me serviu de exemplo e de modelo - o Engenheiro Dias Pereira.
Esse professor, numa das suas primeiras aulas, entrou na sala e sem dizer uma palavra pegou num grande frasco de vidro vazio previamente colocado na sua secretária e começou a enchê-lo com bolas de pingue-pongue.
De seguida, olhou-nos com os seus olhos muito azuis e penetrantes e perguntou-nos se o frasco estava cheio.
Todos respondemos que sim.
O professor pegou então em pequenos palitos e deitou-os para dentro do frasco ao mesmo tempo que o abanava com as duas mãos. Deste modo, os palitos foram preenchendo os espaços vazios entre as bolas de pingue-pongue.
O professor voltou a perguntar-nos se o frasco estava cheio e nós voltámos a responder que sim. De seguida o professor pegou numa caixa de areia e despejou-a dentro do frasco. Obviamente, a areia encheu todos os espaços vazios e o professor questionou novamente se o frasco estava cheio.
Nós respondíamos invariavelmente que sim.
O professor, continuando a sua experiência, adicionou duas chávenas de café ao conteúdo do frasco que preencheu todos os espaços vazios entre a areia.
Depois do espanto geral o professor disse muito solenemente:
- "Quero que entendam que este frasco representa a vida".
As bolas de pingue-pongue são as coisas realmente importantes: a família, a saúde, os amigos, a alegria e as coisas que verdadeiramente nos apaixonam! São coisas que, mesmo que perdêssemos tudo o resto, manteriam a nossa vida cheia.
Os palitos representam outros elementos importantes da nossa vida como o trabalho, a casa e o carro.
A areia é tudo o resto, são as pequenas coisas.
Se colocarmos primeiro a areia no frasco, não haverá espaço para os palitos nem para as bolas de pingue-pongue.
O mesmo acontece com a vida. Se gastarmos todo o nosso tempo e energia nas coisas pequenas, nunca teremos lugar para as coisas que realmente são importantes.
E dizia entusiasmado: prestem atenção ao que realmente importa. Estabeleçam as vossas prioridades e o resto é só areia.
Na aula em que eu reproduzia oralmente esta história e ao chegar a este ponto, julgo que este mesmo aluno, o Henrique, perguntou: “Então e o que representa o café?”
Eu sorri, recordando-me dessa mesma pergunta feita por um aluno ao Engenheiro Dias Pereira, e respondi, tal como ele:
- Ainda bem que me perguntas! Isso é só para vos mostrar que, por mais ocupada que a vossa vida possa parecer, há sempre lugar para tomar um café com um amigo!

Então vamos lá a esse café! Acabei por responder ao mesmo tempo que procurávamos uma mesa disponível na esplanada do bar de praia onde nos tínhamos encontrado.


Há que conceder aos professores a maior das liberdades no que respeita aos conteúdos
a ensinar, assim como aos métodos a utilizar. Pois é verdade que também para
estes o prazer na execução do seu trabalho pode ser aniquilado
pela força ou pela pressão exterior.

Albert Einstein

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Mirandela e a Sociologia da Educação

No âmbito da formação teórica desenvolvida no primeiro ano da Formação em Serviço, na Escola Superior de Educação de Bragança, tive a oportunidade de colaborar na execução de um trabalho que, apesar de ser um trabalho de grupo, me deu grande prazer ou não seja eu neto de um emigrante (França – 1924/1944) e filho de uma emigrante de 2ª geração, nascida em Lille e refugiada em Portugal a partir da ocupação nazi, durante a 2ª Guerra Mundial.

Parece-me assim pertinente deixar aqui um pequeno testemunho deste trabalho a que demos o título de Situações Problemáticas Inerentes a Filhos de Emigrantes na Escola Secundária de Mirandela.

Foi efectuado em 1986 para a disciplina de Sociologia da Educação e assentou no pressuposto de que, a nosso ver, a emigração tinha, nessa época, causas socioeconómicas e políticas muito profundas e não era apenas o resultado de qualquer espírito de aventura ou sentido de descoberta específica dos portugueses.
A emigração era - isso sim - uma das consequências da falta de condições para viver na sua terra e que levava os emigrantes a procurarem outros países para trabalharem, embora a grande maioria deles continuasse ligado ao seu local de origem, ambicionando regressar um dia para sempre.
Entretanto, enquanto o regresso não acontecia, iam-se cortando as raízes, iam sendo atingidos por duras realidades que os levavam, muitas vezes, a perder as perspectivas, a esquecer a terra de onde partiram, a língua, a família e a cultura.
Sendo o Nordeste Transmontano a região que, com maior incidência, carregava este fenómeno social, decidimos fazer convergir a nossa atenção precisamente nos filhos desses homens e mulheres que, arrancados da sua terra, lutavam lá longe por melhores condições de vida. Esses filhos que, em princípio, estariam marcados por cicatrizes afectivas, sociais e tantas outras, resultado da sua condição, frequentavam as nossas escolas e, particularmente, a Escola Secundária de Mirandela.
De facto, foi partindo desta hipótese que definimos os objectivos do trabalho.
No fim, concluímos que os filhos dos nossos emigrantes deparavam, de facto, com situações problemáticas a vários níveis e que resultava, inevitavelmente, numa grande taxa de insucesso e abandono escolar.
Desde os problemas resultantes da nova situação económica de seus pais que, grande parte das vezes, na tentativa de uma compensação afectiva, lhes faziam dispor de dinheiro em excesso propício a esbanjamento, à aquisição de bens supérfluos e até prejudiciais ao desenvolvimento da sua personalidade que, tantas vezes, os conduzia ainda à prodigalidade, à droga, ao alcoolismo e a tantos outros vícios.
Aos problemas afectivos. E era talvez este o aspecto que cicatrizes mais profundas não deixavam de afectar, essencialmente àqueles a quem, em idades tão precoces, eram retirados aos pais e entregues aos cuidados de alguém que jamais os substituirá neste campo tão delicado que é a afectividade. Por outro lado, muitos deles eram super protegidos pelos avós que não os deixavam ter iniciativas além das da rotina diária com medo que algo lhes acontecesse, principalmente se eram meninas: não as deixavam participar em festas, não lhes permitiam frequentar actividades extra-escolares (excursões, bailes de finalistas, concursos, etc.). Ao contrário, avós havia altamente condescendentes que não contrariavam os meninos tomando atitudes de total permissividade.
Aos problemas sociais. Embora grande parte dos nossos alunos não considerasse ter situações problemáticas neste campo, aqueles que as apontavam, referiam essencialmente problemas de integração: melhores condições há no estrangeiro; menos empregos em Portugal mesmo quando portadores de habilitações; dificuldade na assistência médica; diferença de mentalidade (os estrangeiros eram considerados de mentalidade mais evoluída e aberta); falta de apoio na sua integração; falta de diálogo entre professores e alunos; inexistência de centros de interesse social; agricultura artesanal de um modo evidente nesta região do nordeste transmontano o que se tornava desmotivante e a indústria por aqui era praticamente inexistente.
Aos problemas de identidade. Estes eram problemas comuns a todos os jovens, mas que se colocavam de uma forma gritante aos filhos dos emigrantes. Com efeito, a construção da sua personalidade divide-se entre duas sociedades de normas e valores completamente diferentes, principalmente com aqueles que estudam aqui e cujos pais ainda se encontram no estrangeiro. Esta mudança cultural e histórica revelava-se demasiado traumatizante para a formação de identidade de alguns, de tal forma que lhes abala a consistência interior da sua hierarquia de expectativas.
Por sua vez, no estrangeiro, os nossos jovens sentiam-se inferiores em relação aos seus colegas naturais desses países, devido ao estatuto jurídico do emigrante que limitava, nessa época, os seus direitos cívicos nomeadamente a impossibilidade de ocuparem funções em certas profissões (função pública, por exemplo) e a problemas administrativos no que diz respeito à estadia e à nacionalidade.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Mirandela. Período compreendido entre 1984 a 1988

Mirandela tinha assumido recentemente o estatuto de cidade e já era conhecida pela Princesa do Tua. Era e é reconhecida pelas alheiras tradicionais, mas ainda não era a cidade que é hoje: moderna, renovada, bonita, com uma bacia de água que a torna o centro das atenções.

Foi aqui nesta cidade e na sua Escola Secundária que tive a oportunidade de fazer a minha profissionalização em exercício, no biénio de 1986/88, tendo adquirido o estatuto de Professor do Quadro de Nomeação Definitiva.
Até então era apenas um professor provisório e, como tal, tinha de concorrer todos os anos lectivos às vagas que sobravam após a colocação e deslocação dos professores efectivos nos quadros de escola.
Durante este período leccionei uma disciplina teórico-prática, Hortofloricultura e Criação de Animais, que os alunos tomavam a opção de escolher, ou não, para o seu currículo a partir do 7º ano de escolaridade e até ao 9º ano.
Passei também, nesta escola, por experiências muito enriquecedoras sob o ponto de vista pessoal e profissional.
A Formação em exercício, como era denominada na altura, estava estruturada em dois anos lectivos.
O primeiro foi todo ele dedicado à formação teórica em Ciências da Educação com a frequência das aulas na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Bragança às disciplinas de Desenvolvimento Curricular, Gestão e Administração Escolar, Psicologia da Educação e Sociologia da Educação
O segundo ano foi dedicado à prática pedagógica orientada por um professor orientador pedagógico que nos orientava, supervisionava e avaliava.
No início foi necessário adoptar grelhas de planificação que contemplassem os diferentes parâmetros necessários para o desenvolvimento de cada unidade de ensino e de cada aula.
No primeiro desses parâmetros - planificação - formulavam-se os objectivos, organizavam-se os conteúdos, seleccionavam-se estratégias e actividades adequadas, preparavam-se os instrumentos de trabalho apropriados, fazia-se o encadeamento lógico da planificação, previam-se tarefas de remediação e/ou enriquecimento e, se fosse necessário, reestruturava-se a planificação tendo em vista a renovação da prática.
No segundo definiam-se os aspectos considerados imprescindíveis para uma adequada execução das aulas: clarificação com os alunos dos objectivos a atingir e as formas de avaliação; utilização correcta dos conhecimentos científicos; utilização de uma linguagem correcta e apropriada aqueles alunos; adaptação às reacções imprevistas dos alunos; utilização das estratégias e actividades previstas; utilização adequada das técnicas de expressão e comunicação; utilização eficaz dos meios e materiais auxiliares; gestão do tempo de acordo com o ritmo de participação e aprendizagem dos alunos; criação de condições de realização de tarefas num clima de liberdade, responsabilidade e cooperação, atendendo aos problemas individuais e grupais dos alunos e reestruturação das tarefas com vista à consecução dos objectivos formulados.
No terceiro parâmetro - avaliação -  prevíamos a aplicação adequada dos instrumentos de avaliação; analisavam-se criticamente os resultados obtidos; fomentava-se a auto e hetero-avaliação e projectava-se a reflexão crítica na realização de actividades futuras.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Vila Flor e o aluno Peixoto


Passados doze anos cá estávamos nós, de novo, neste mesmo edifício, aquele que me castigou dessa forma tão injusta e cruel e eu, agora mais maduro e cheio de vontade de ensinar e aprender.
Quando o vi pela primeira vez recordei-me destes e de outros acontecimentos também ilustrativos da forma como se (des)educavam os alunos dessa época.
Apesar de tudo, a nossa relação profissional acabou por ser positiva.
Após termos ultrapassado alguns constrangimentos iniciais tornámo-nos cooperantes um com o outro. Eu aproveitando os seus conhecimentos científicos em algumas áreas em que ele era, de facto,  muito bom e ainda alguns aspectos da sua experiência que devidamente enquadrados com a minha postura e atitude pedagógica e profissional se tornaram interessantes para o desenvolvimento da minha actividade. Ele servindo-se da minha juventude, dinâmica e vontade de cooperar com toda a comunidade educativa,  substituindo-o em algumas tarefas e funções educativas que já lhe custavam a executar, nomeadamente a fazer as actas das reuniões em que ele, sendo o secretário, teria de as redigir e a transcrever para as pautas as classificações e as avaliações qualitativas dos alunos das turmas que tínhamos em comum.
O Padre Dimas Fais, quer pelas mudanças ocorridas após 25 de Abril de 1974 e que tiveram impacto em toda a sociedade portuguesa, quer devido à sua avançada idade estava diferente. Ou ... agia de forma diferente!

Ainda durante este período (1980-83), numa aula de Biologia, estava a falar da fisiologia do aparelho urinário de alguns mamíferos aos alunos de uma turma de 9º ano, quando o Peixoto, aluno interessado e com forte personalidade, me perguntou qual o símbolo químico do ácido hipúrico.
- Pois … boa pergunta! Não sei! - disse eu. Nem tenho que saber.  A fórmula estrutural é bastante complexa e não tem muito interesse em decorá-la.
O importante é que vocês aprendam que este é um composto formado pela conjugação do ácido benzóico e glicina, que ocorre na urina de animais herbívoros, que é eliminado na urina e que representa uma forma não tóxica de eliminação.  
Na aula seguinte, quando me preparava para clarificar com mais rigor a questão colocada pelo Peixoto este vira-se para mim e diz:
- Professor, afinal o ácido hipúrico não existe!
- Como!? Não existe? Porque dizes isso?
- Foi a professora de Físico-Química. Perguntei-lhe ontem pelo símbolo químico e ela disse que o professor deve estar equivocado.
- Quem deve estar equivocado és tu! A professora provavelmente não disse que o ácido não existe. Tu, se calhar, interpretaste mal a professora. Disse eu sem qualquer convicção.
- Não, não, responderam em simultâneo mais dois ou três alunos, ela disse mesmo que era o professor que estava enganado. Que nunca tinha ouvido falar desse ácido. E se nunca tinha ouvido falar é porque não existia!
- Aí sim!? Então abram, por favor, o vosso manual na página 98. Agora o Peixoto vai ler os dois últimos parágrafos.
Enquanto o Peixoto lia uma parte do texto onde era explicado como se formava o dito ácido, pensei que estava metido numa situação algo complicada em termos éticos e profissionais. Os alunos iriam perceber que um dos professores estava mal preparado e, naturalmente, que iria ficar mal visto perante a turma.
O futuro ir-me-ia, infelizmente, dar razão. A partir desse dia os alunos desta turma e, especialmente o Peixoto, tornaram-se muito indisciplinados nas aulas de Físico-Química.
A professora perdeu o controlo da turma e, em consequência, começou a marcar faltas disciplinares. Uma dessas faltas deu origem a um processo disciplinar. No respectivo Conselho de turma disciplinar constatou-se que o aluno apenas tinha comportamentos condenáveis nas aulas de Físico-química. Todos os outros professores referiram que o aluno era bem comportado, interessado e com aproveitamento escolar superior à média da turma.
No entanto, apesar dessas atenuantes, a falta foi considerada grave e, em consequência, foi proposta e aceite pela maioria dos docentes uma pena de suspensão de dois dias. Eu votei contra a suspensão do aluno e sugeri que lhe fosse aplicada uma repreensão verbal pelo presidente do Conselho Directivo. Esta sugestão foi recusada por todos os professores do Conselho de Turma excepto pelo … Padre Cassiano Dimas Fais – professor de Educação Moral Religiosa e Católica!