domingo, 26 de dezembro de 2010

Em Vila Flor, de novo!

Fui colocado na Escola Secundária de Vila Flor, inaugurada 5 anos antes, no ano lectivo de 1989/90 e aqui trabalhei até ao ano lectivo de 1994/95. Este foi um período importante e determinante para a minha carreira profissional. Foi como que um despertar para a necessidade de consolidar a minha formação profissional e académica, frequentando diversas acções de formação e concluindo o Curso de Estudos Superiores Especializados, em Educação Especial.

Entretanto fui vivenciando experiências extraordinárias sob o ponto de vista pessoal e profissional e outras menos boas mas que também tiveram importância pois ajudaram-me a crescer, a conhecer-me melhor e, sobretudo, a conhecer melhor os outros.
Um dia, estava na Biblioteca da escola a preparar os tabuleiros de xadrez, as peças, os relógios e restante material para um pequeno torneio que tinha organizado para os alunos inscritos no Clube de Xadrez e não pude deixar de ouvir a conversa entre duas alunas e um colega da mesma turma.
A Cristiana, de 14 anos, dizia para a amiga e colega:
- Sabes o que aquele parvo me disse um dia? Apontando para o professor que viam passar através da janela e que subia em direcção ao bloco de aulas
- Aquele? Perguntou baixinho a Rosalinda, de 14 anos também.
- Sim! Segredou-me ao ouvido que tinha uma simpatia muito especial por mim!
- Como!? E que queria ele dizer-te com isso?
- À saída da sala 15, numa das suas últimas aulas antes de ter sido suspenso. Eu respondi-lhe que ainda um dia se iria arrepender do que me andava a fazer!
- Ele, de facto, era muito estranho e já não tinha “mão” na turma. É verdade que tinhamos alguns colegas muito insubordinados, que faziam muito barulho e ele fartava-se de gritar: “foda-se, estou farto disto, caralho, esta turma é uma merda”!
- Mas eu quero lá saber disso! - Retorquiu a Cristiana. A mim é que ele não me apalpa mais as mamas, senão vou mesmo dizer ao meu pai! Numa aula até me tocou “entre as pernas”! O porco!
- Sabes que a Ramaca também se queixa do mesmo? – e só tem 12 anos!... Ela disse-me que apenas deixou de a apalpar e de lhe dar beliscos a partir do momento em que soube que as alunas duma turma de 8º ano se queixaram dele ao Conselho Directivo. Parece que escreveram uma carta onde referiam que o professor contava anedotas “picantes” relacionadas com sexo e que tinha tentado apalpar algumas delas e apalpado outras.
- Pois! Ele fazia isso em quase todas as turmas. Também a Cristabela me disse, na cantina, que estava a pensar dizer ao pai – mas que tinha receio das consequências. “Se o meu pai sabe que ele me apalpa os seios sempre que pode e me acaricia o pescoço, é bem capaz de o matar!” 
O Castanho, que até aí se tinha mantido em silêncio, retorquiu:
- sabem o que ele me disse uma vez? Aquele kota de merda? Disse-me que eu não tinha tesão para as duas que estavam comigo - a Carla e a Joana. Enquanto me dizia isto ia metendo as mãos debaixo dos sovacos da Joana na tentativa de lhe chegar aos seios. Mas ela apertou os braços e não deixou. Para disfarçar perguntou-nos se tínhamos visto a telenovela brasileira “Pantanal”. Como não tínhamos visto ele passou a descrever, em pormenor, as cenas mais chocantes, sobretudo as que se relacionavam com cenas amorosas e que metiam sexo.
- E tu, que fizeste? Perguntou Cristana
- Eu!? Ouvi-o caladinho como um rato! Não me fosse acontecer o mesmo que ao Filipão. Num dia do terceiro período do ano passado, estava ele de pé junto à janela e o professor mandou-o sentar ao mesmo tempo que lhe perguntava se ia com os pais para a cama, quando estes iam fazer amor.
Como lhe retorquiu que os pais não eram para ali chamados, o professor, de imediato, pô-lo na rua dizendo que a partir daquele dia já estava chumbado por excesso de faltas.
E, de facto, assim aconteceu, chumbou mesmo. Este ano, o Filipão, matriculou-se na Secundária de Mirandela e veio duas vezes aqui à escola com o único propósito de furar os pneus da carrinha do Professor.
Se calhar é por isso que ele disse à Margarida, a namorada do Filipão, que qualquer dia lhe deitava as mãos às mamas que até a fazia andar de lado! Concluiu Rosalinda.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Carrazeda de Ansiães, 1988/1989

Quer vir tomar café?
Virei-me e olhei para o homem alto, forte e sorridente que me interrogava assim tão inesperadamente.
- Não se lembra de mim?
- Não! Confesso que não! Respondi embaraçado.
- Sou o Henrique Samorinha e fui seu aluno na Escola Secundária de Carrazeda de Ansiães.
- Pois! Isso já foi há tanto tempo e … ena … mudaste tanto!
- É verdade mas nunca me esqueci de si nem daquelas histórias que nos costumava contar nas aulas. Lembra-se daquela muito engraçada... a do frasco cheio?
Este encontro casual ocorrido recentemente numa cidade do litoral do País remeteu-me para o ano lectivo de 1988/89.
Após a profissionalização em serviço, concluída no ano lectivo anterior, concorri e fui colocado novamente em Carrazeda de Ansiães, mas agora na Escola Secundária, recentemente construída e inaugurada.
Foi apenas um ano lectivo mas gostei! Os alunos eram disciplinados e conseguimos estabelecer uma excelente relação.
Uma das minhas preocupações era, nessa altura e desde sempre, contribuir para a sua formação global orientando as aulas para a promoção de uma cidadania activa e para o seu desenvolvimento enquanto cidadãos participativos e críticos da sociedade, utilizando (sempre que possível) exemplos práticos do dia-a-dia para ilustrar as mensagens que queria passar e transmitir.
"Bem melhor do que ensinar o pouco que se vai sabendo, é abrir para a vastidão do que se desconhece."
Um dos exemplos que utilizava frequentemente para transmitir valores e atitudes correctas, era exactamente o do “frasco cheio”. Hoje em dia, pela disseminação da informação e do conhecimento através da internet, esta estória é bem capaz de ser conhecida mas a mim foi-me transmitida, muitos anos antes, por um professor que me serviu de exemplo e de modelo - o Engenheiro Dias Pereira.
Esse professor, numa das suas primeiras aulas, entrou na sala e sem dizer uma palavra pegou num grande frasco de vidro vazio previamente colocado na sua secretária e começou a enchê-lo com bolas de pingue-pongue.
De seguida, olhou-nos com os seus olhos muito azuis e penetrantes e perguntou-nos se o frasco estava cheio.
Todos respondemos que sim.
O professor pegou então em pequenos palitos e deitou-os para dentro do frasco ao mesmo tempo que o abanava com as duas mãos. Deste modo, os palitos foram preenchendo os espaços vazios entre as bolas de pingue-pongue.
O professor voltou a perguntar-nos se o frasco estava cheio e nós voltámos a responder que sim. De seguida o professor pegou numa caixa de areia e despejou-a dentro do frasco. Obviamente, a areia encheu todos os espaços vazios e o professor questionou novamente se o frasco estava cheio.
Nós respondíamos invariavelmente que sim.
O professor, continuando a sua experiência, adicionou duas chávenas de café ao conteúdo do frasco que preencheu todos os espaços vazios entre a areia.
Depois do espanto geral o professor disse muito solenemente:
- "Quero que entendam que este frasco representa a vida".
As bolas de pingue-pongue são as coisas realmente importantes: a família, a saúde, os amigos, a alegria e as coisas que verdadeiramente nos apaixonam! São coisas que, mesmo que perdêssemos tudo o resto, manteriam a nossa vida cheia.
Os palitos representam outros elementos importantes da nossa vida como o trabalho, a casa e o carro.
A areia é tudo o resto, são as pequenas coisas.
Se colocarmos primeiro a areia no frasco, não haverá espaço para os palitos nem para as bolas de pingue-pongue.
O mesmo acontece com a vida. Se gastarmos todo o nosso tempo e energia nas coisas pequenas, nunca teremos lugar para as coisas que realmente são importantes.
E dizia entusiasmado: prestem atenção ao que realmente importa. Estabeleçam as vossas prioridades e o resto é só areia.
Na aula em que eu reproduzia oralmente esta história e ao chegar a este ponto, julgo que este mesmo aluno, o Henrique, perguntou: “Então e o que representa o café?”
Eu sorri, recordando-me dessa mesma pergunta feita por um aluno ao Engenheiro Dias Pereira, e respondi, tal como ele:
- Ainda bem que me perguntas! Isso é só para vos mostrar que, por mais ocupada que a vossa vida possa parecer, há sempre lugar para tomar um café com um amigo!

Então vamos lá a esse café! Acabei por responder ao mesmo tempo que procurávamos uma mesa disponível na esplanada do bar de praia onde nos tínhamos encontrado.


Há que conceder aos professores a maior das liberdades no que respeita aos conteúdos
a ensinar, assim como aos métodos a utilizar. Pois é verdade que também para
estes o prazer na execução do seu trabalho pode ser aniquilado
pela força ou pela pressão exterior.

Albert Einstein

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Mirandela e a Sociologia da Educação

No âmbito da formação teórica desenvolvida no primeiro ano da Formação em Serviço, na Escola Superior de Educação de Bragança, tive a oportunidade de colaborar na execução de um trabalho que, apesar de ser um trabalho de grupo, me deu grande prazer ou não seja eu neto de um emigrante (França – 1924/1944) e filho de uma emigrante de 2ª geração, nascida em Lille e refugiada em Portugal a partir da ocupação nazi, durante a 2ª Guerra Mundial.

Parece-me assim pertinente deixar aqui um pequeno testemunho deste trabalho a que demos o título de Situações Problemáticas Inerentes a Filhos de Emigrantes na Escola Secundária de Mirandela.

Foi efectuado em 1986 para a disciplina de Sociologia da Educação e assentou no pressuposto de que, a nosso ver, a emigração tinha, nessa época, causas socioeconómicas e políticas muito profundas e não era apenas o resultado de qualquer espírito de aventura ou sentido de descoberta específica dos portugueses.
A emigração era - isso sim - uma das consequências da falta de condições para viver na sua terra e que levava os emigrantes a procurarem outros países para trabalharem, embora a grande maioria deles continuasse ligado ao seu local de origem, ambicionando regressar um dia para sempre.
Entretanto, enquanto o regresso não acontecia, iam-se cortando as raízes, iam sendo atingidos por duras realidades que os levavam, muitas vezes, a perder as perspectivas, a esquecer a terra de onde partiram, a língua, a família e a cultura.
Sendo o Nordeste Transmontano a região que, com maior incidência, carregava este fenómeno social, decidimos fazer convergir a nossa atenção precisamente nos filhos desses homens e mulheres que, arrancados da sua terra, lutavam lá longe por melhores condições de vida. Esses filhos que, em princípio, estariam marcados por cicatrizes afectivas, sociais e tantas outras, resultado da sua condição, frequentavam as nossas escolas e, particularmente, a Escola Secundária de Mirandela.
De facto, foi partindo desta hipótese que definimos os objectivos do trabalho.
No fim, concluímos que os filhos dos nossos emigrantes deparavam, de facto, com situações problemáticas a vários níveis e que resultava, inevitavelmente, numa grande taxa de insucesso e abandono escolar.
Desde os problemas resultantes da nova situação económica de seus pais que, grande parte das vezes, na tentativa de uma compensação afectiva, lhes faziam dispor de dinheiro em excesso propício a esbanjamento, à aquisição de bens supérfluos e até prejudiciais ao desenvolvimento da sua personalidade que, tantas vezes, os conduzia ainda à prodigalidade, à droga, ao alcoolismo e a tantos outros vícios.
Aos problemas afectivos. E era talvez este o aspecto que cicatrizes mais profundas não deixavam de afectar, essencialmente àqueles a quem, em idades tão precoces, eram retirados aos pais e entregues aos cuidados de alguém que jamais os substituirá neste campo tão delicado que é a afectividade. Por outro lado, muitos deles eram super protegidos pelos avós que não os deixavam ter iniciativas além das da rotina diária com medo que algo lhes acontecesse, principalmente se eram meninas: não as deixavam participar em festas, não lhes permitiam frequentar actividades extra-escolares (excursões, bailes de finalistas, concursos, etc.). Ao contrário, avós havia altamente condescendentes que não contrariavam os meninos tomando atitudes de total permissividade.
Aos problemas sociais. Embora grande parte dos nossos alunos não considerasse ter situações problemáticas neste campo, aqueles que as apontavam, referiam essencialmente problemas de integração: melhores condições há no estrangeiro; menos empregos em Portugal mesmo quando portadores de habilitações; dificuldade na assistência médica; diferença de mentalidade (os estrangeiros eram considerados de mentalidade mais evoluída e aberta); falta de apoio na sua integração; falta de diálogo entre professores e alunos; inexistência de centros de interesse social; agricultura artesanal de um modo evidente nesta região do nordeste transmontano o que se tornava desmotivante e a indústria por aqui era praticamente inexistente.
Aos problemas de identidade. Estes eram problemas comuns a todos os jovens, mas que se colocavam de uma forma gritante aos filhos dos emigrantes. Com efeito, a construção da sua personalidade divide-se entre duas sociedades de normas e valores completamente diferentes, principalmente com aqueles que estudam aqui e cujos pais ainda se encontram no estrangeiro. Esta mudança cultural e histórica revelava-se demasiado traumatizante para a formação de identidade de alguns, de tal forma que lhes abala a consistência interior da sua hierarquia de expectativas.
Por sua vez, no estrangeiro, os nossos jovens sentiam-se inferiores em relação aos seus colegas naturais desses países, devido ao estatuto jurídico do emigrante que limitava, nessa época, os seus direitos cívicos nomeadamente a impossibilidade de ocuparem funções em certas profissões (função pública, por exemplo) e a problemas administrativos no que diz respeito à estadia e à nacionalidade.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Mirandela. Período compreendido entre 1984 a 1988

Mirandela tinha assumido recentemente o estatuto de cidade e já era conhecida pela Princesa do Tua. Era e é reconhecida pelas alheiras tradicionais, mas ainda não era a cidade que é hoje: moderna, renovada, bonita, com uma bacia de água que a torna o centro das atenções.

Foi aqui nesta cidade e na sua Escola Secundária que tive a oportunidade de fazer a minha profissionalização em exercício, no biénio de 1986/88, tendo adquirido o estatuto de Professor do Quadro de Nomeação Definitiva.
Até então era apenas um professor provisório e, como tal, tinha de concorrer todos os anos lectivos às vagas que sobravam após a colocação e deslocação dos professores efectivos nos quadros de escola.
Durante este período leccionei uma disciplina teórico-prática, Hortofloricultura e Criação de Animais, que os alunos tomavam a opção de escolher, ou não, para o seu currículo a partir do 7º ano de escolaridade e até ao 9º ano.
Passei também, nesta escola, por experiências muito enriquecedoras sob o ponto de vista pessoal e profissional.
A Formação em exercício, como era denominada na altura, estava estruturada em dois anos lectivos.
O primeiro foi todo ele dedicado à formação teórica em Ciências da Educação com a frequência das aulas na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Bragança às disciplinas de Desenvolvimento Curricular, Gestão e Administração Escolar, Psicologia da Educação e Sociologia da Educação
O segundo ano foi dedicado à prática pedagógica orientada por um professor orientador pedagógico que nos orientava, supervisionava e avaliava.
No início foi necessário adoptar grelhas de planificação que contemplassem os diferentes parâmetros necessários para o desenvolvimento de cada unidade de ensino e de cada aula.
No primeiro desses parâmetros - planificação - formulavam-se os objectivos, organizavam-se os conteúdos, seleccionavam-se estratégias e actividades adequadas, preparavam-se os instrumentos de trabalho apropriados, fazia-se o encadeamento lógico da planificação, previam-se tarefas de remediação e/ou enriquecimento e, se fosse necessário, reestruturava-se a planificação tendo em vista a renovação da prática.
No segundo definiam-se os aspectos considerados imprescindíveis para uma adequada execução das aulas: clarificação com os alunos dos objectivos a atingir e as formas de avaliação; utilização correcta dos conhecimentos científicos; utilização de uma linguagem correcta e apropriada aqueles alunos; adaptação às reacções imprevistas dos alunos; utilização das estratégias e actividades previstas; utilização adequada das técnicas de expressão e comunicação; utilização eficaz dos meios e materiais auxiliares; gestão do tempo de acordo com o ritmo de participação e aprendizagem dos alunos; criação de condições de realização de tarefas num clima de liberdade, responsabilidade e cooperação, atendendo aos problemas individuais e grupais dos alunos e reestruturação das tarefas com vista à consecução dos objectivos formulados.
No terceiro parâmetro - avaliação -  prevíamos a aplicação adequada dos instrumentos de avaliação; analisavam-se criticamente os resultados obtidos; fomentava-se a auto e hetero-avaliação e projectava-se a reflexão crítica na realização de actividades futuras.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Vila Flor e o aluno Peixoto


Passados doze anos cá estávamos nós, de novo, neste mesmo edifício, aquele que me castigou dessa forma tão injusta e cruel e eu, agora mais maduro e cheio de vontade de ensinar e aprender.
Quando o vi pela primeira vez recordei-me destes e de outros acontecimentos também ilustrativos da forma como se (des)educavam os alunos dessa época.
Apesar de tudo, a nossa relação profissional acabou por ser positiva.
Após termos ultrapassado alguns constrangimentos iniciais tornámo-nos cooperantes um com o outro. Eu aproveitando os seus conhecimentos científicos em algumas áreas em que ele era, de facto,  muito bom e ainda alguns aspectos da sua experiência que devidamente enquadrados com a minha postura e atitude pedagógica e profissional se tornaram interessantes para o desenvolvimento da minha actividade. Ele servindo-se da minha juventude, dinâmica e vontade de cooperar com toda a comunidade educativa,  substituindo-o em algumas tarefas e funções educativas que já lhe custavam a executar, nomeadamente a fazer as actas das reuniões em que ele, sendo o secretário, teria de as redigir e a transcrever para as pautas as classificações e as avaliações qualitativas dos alunos das turmas que tínhamos em comum.
O Padre Dimas Fais, quer pelas mudanças ocorridas após 25 de Abril de 1974 e que tiveram impacto em toda a sociedade portuguesa, quer devido à sua avançada idade estava diferente. Ou ... agia de forma diferente!

Ainda durante este período (1980-83), numa aula de Biologia, estava a falar da fisiologia do aparelho urinário de alguns mamíferos aos alunos de uma turma de 9º ano, quando o Peixoto, aluno interessado e com forte personalidade, me perguntou qual o símbolo químico do ácido hipúrico.
- Pois … boa pergunta! Não sei! - disse eu. Nem tenho que saber.  A fórmula estrutural é bastante complexa e não tem muito interesse em decorá-la.
O importante é que vocês aprendam que este é um composto formado pela conjugação do ácido benzóico e glicina, que ocorre na urina de animais herbívoros, que é eliminado na urina e que representa uma forma não tóxica de eliminação.  
Na aula seguinte, quando me preparava para clarificar com mais rigor a questão colocada pelo Peixoto este vira-se para mim e diz:
- Professor, afinal o ácido hipúrico não existe!
- Como!? Não existe? Porque dizes isso?
- Foi a professora de Físico-Química. Perguntei-lhe ontem pelo símbolo químico e ela disse que o professor deve estar equivocado.
- Quem deve estar equivocado és tu! A professora provavelmente não disse que o ácido não existe. Tu, se calhar, interpretaste mal a professora. Disse eu sem qualquer convicção.
- Não, não, responderam em simultâneo mais dois ou três alunos, ela disse mesmo que era o professor que estava enganado. Que nunca tinha ouvido falar desse ácido. E se nunca tinha ouvido falar é porque não existia!
- Aí sim!? Então abram, por favor, o vosso manual na página 98. Agora o Peixoto vai ler os dois últimos parágrafos.
Enquanto o Peixoto lia uma parte do texto onde era explicado como se formava o dito ácido, pensei que estava metido numa situação algo complicada em termos éticos e profissionais. Os alunos iriam perceber que um dos professores estava mal preparado e, naturalmente, que iria ficar mal visto perante a turma.
O futuro ir-me-ia, infelizmente, dar razão. A partir desse dia os alunos desta turma e, especialmente o Peixoto, tornaram-se muito indisciplinados nas aulas de Físico-Química.
A professora perdeu o controlo da turma e, em consequência, começou a marcar faltas disciplinares. Uma dessas faltas deu origem a um processo disciplinar. No respectivo Conselho de turma disciplinar constatou-se que o aluno apenas tinha comportamentos condenáveis nas aulas de Físico-química. Todos os outros professores referiram que o aluno era bem comportado, interessado e com aproveitamento escolar superior à média da turma.
No entanto, apesar dessas atenuantes, a falta foi considerada grave e, em consequência, foi proposta e aceite pela maioria dos docentes uma pena de suspensão de dois dias. Eu votei contra a suspensão do aluno e sugeri que lhe fosse aplicada uma repreensão verbal pelo presidente do Conselho Directivo. Esta sugestão foi recusada por todos os professores do Conselho de Turma excepto pelo … Padre Cassiano Dimas Fais – professor de Educação Moral Religiosa e Católica!

sábado, 20 de novembro de 2010

Vila Flor e o segundo castigo

A segunda vez que o Padre Cassiano Dimas Fais me castigou, também com três dias de suspensão, resultou de um acontecimento que ilustra fielmente a forma como a sociedade (o povo) dessa época aceitava, sem pestanejar, o poder da igreja e dos seus representantes. Por outro lado mostra a forma prepotente como esse poder era exercido em algumas situações.

O incidente aconteceu numa tarde de sábado, em Maio de 1970.
A música de um gira-discos animava os cinco ou seis pares que dançavam na sede do Vila Flor Spor Clube. O meu par tinha ido embora momentos antes com receio de que o pai descobrisse onde ela estava e o que andava a fazer. Encontrava-me, naquele momento, junto da porta de entrada da Sede quando, de repente, vejo passar uma bela rapariga de largas ancas e fartos peitos, com andar decidido e mais velha aí uns quatro ou cinco anos do que eu. Não resisti a mandar-lhe uns piropos. Sem a ofender, antes pelo contrário, para a galantear disse-lhe qualquer coisa como isto: “tens uma avançada melhor do que a do Benfica”! “És muito jeitosa”! "Queres vir dançar comigo?".
Ela olhou para mim e respondeu: És um malandreco! Pensas que não te conheço? Pensas que engatas as raparigas todas? Vou já dizer ao Senhor Padre!
Eu não sabia mas o Lelo Pinto, que estava a meu lado, logo me avisou que aquela rapariga era criada do padre Cassiano.
Mau, mau, então estou feito! Pensei.
Nessa mesma noite por volta da hora do jantar, apareceu em casa dos meus pais uma patrulha da GNR(!) acompanhados pelo sacristão(!) dizendo a meu pai para ir, sem demoras, a casa do padre e... para eu ir também.
Pelo caminho fui dizendo ao meu pai que já sabia a razão pela qual lá íamos. E contei-lhe o incidente dessa tarde em que eu tinha mandado uns piropos à criada do padre. Mas enfatizei o facto de não a ter maltratado, não lhe ter faltado ao respeito e, muito menos, ter sido mal-educado.
Logo que entrámos o Padre mandou sentar o meu pai numa cadeira que ficava ao seu lado direito mas num plano inferior ao seu.
A mim mandou-me ficar de pé e sem grandes rodeios, virando-se directamente para o meu pai, sentenciou:
-Pois aqui o seu filho tratou mal a minha criada que é para mim como da família! Deve educar melhor os seus filhos!
Virou-se para mim e disse: Vais ter que lhe pedir desculpa!
- Eu, não me contive e perguntei: Porquê? Que lhe fiz?
- Então não te meteste com ela dizendo que era muito boa?
- Não foi bem esse o termo. Mas era minha intenção gabá-la, elogiá-la e convidá-la para dançar.
- Com a minha criada ninguém se mete! Ouviste?
- Mas … se eu soubesse que era sua criada, mesmo sem a ter ofendido, nada lhe teria dito!
- Não quero saber! Vamos … pede-lhe desculpa! Já! Apontando o dedo indicador para a criada que entretanto tinha entrado para a pequena sala onde estávamos.
Olhei para a rapariga que tinha visto pela primeira vez nessa mesma tarde. Estava com o rosto ruborizado e com o olhar descido para o chão e senti-me também envergonhado pela situação em que ambos estávamos.
Mesmo assim perguntei-lhe:
- Eu ofendi-te? Prejudiquei-te? Diz a verdade!
Ela olhou para o padre e para o meu pai. Depois baixou de novo os seus grandes, lindos e tristes olhos para o chão e não me respondeu.
Mas o padre não desistiu insistindo:
- Tens que lhe pedir desculpa! Vamos … pede!
Eu, a tremer de revolta, virei-me para meu pai e pedi-lhe para me levar dali. A chorar supliquei-lhe:
- Pai, vamos embora daqui - nós não merecemos esta humilhação!
- Filho, pede desculpa e vamos embora! Respondeu ele.
- Mas, porquê? Porquê?
- Anda lá, não custa nada!
- Mas, pai! Só lhe quis dizer que era muito bonita! Que simpatizava com ela. Não tenho que pedir desculpa por isso.
- Bom, como não tenho a noite toda para aturar a tua má educação sai já daqui! Vai para a rua e espera lá pelo teu pai enquanto decido quantos dias vais ficar de castigo.
- Mas isso é uma injustiça! Eu tenho que ir às aulas! O meu pai paga as propinas para eu frequentar aquele colégio e o que aconteceu nada se relaciona com os meus estudos. Não tem o direito de aplicar esse castigo. E saí, sem olhar para trás, a correr e a chorar de raiva e de revolta. Fui directamente para casa e contei a minha mãe o que se tinha passado. Esta respondeu-me que deveria ter pedido desculpa pois o padre ainda podia vir a prejudicar o pai.
Passados alguns minutos lá chegou o meu pai, de chapéu na mão, com a sentença do Padre: três dias de suspensão das actividades lectivas!
- O quê? O que tem a ver a criada do padre com os meus estudos? Perguntei.
- Deixa lá filho não digas nada. Ele pode fazer com que eu perca o emprego.
Este foi sem dúvida um dos piores períodos que tive de percorrer e viver.
Para superar esta “crise” e estes episódios, que foram vividos e sentidos de forma intensa e dramática, tive de fazer um grande esforço. Atravessei momentos em que não sabia muito bem o que podia fazer para melhorar e dar a volta por cima. Mas agora sei que o segredo foi não ter baixado os braços e não ter deixado que essas dificuldades dessem cabo da minha alegria de viver, da minha família e da minha vida. Habituei-me a não gastar os meus dias com queixas e lamentações e (re)aprendi a viver sem algumas das coisas a que achava que tinha direito e, entretanto, me foram retiradas, ganhando com isso a possibilidade de desfrutar de outras ainda com mais potencialidades. Aprendi ainda a olhar para as pessoas, para os objectos, para os sítios, para os acontecimentos, com outros olhos, com outro sentido de descoberta.
Considero que, porventura, deste período saí mais forte e com mais capacidade de conseguir ver o lado positivo da vida mesmo quando tudo parece cinzento e nublado.

domingo, 14 de novembro de 2010

Vila Flor e o "reencontro" com a adolescência

Durante esses três longos dias senti-me terrivelmente dividido.
Se por um lado tinha a consciência tranquila e a esperança de que viria a superar esta má fase, por outro sentia-me inquieto, inseguro e com um profundo pessimismo em relação ao futuro.
Estes sentimentos ambivalentes de esperança e de pessimismo iriam repercutir-se e propagar-se por toda a minha adolescência e até mesmo pela idade adulta.
De facto, e sem querer ser piegas, acho que fui pouco ajudado nos momentos mais traumáticos, quer na idade infantil, quer na adolescência. Apesar disso quando caí, levantei-me sempre. Mas sozinho.
Três anos após aqueles acontecimentos, ainda neste colégio, vivi a minha primeira paixão. Um grande amor, platónico é certo, mas que vivi intensamente e que me deu mais momentos de tristeza do que de alegria.
Nós só queríamos estar juntos e sem incomodar ninguém! No entanto fomos perseguidos, ameaçados, castigados e injustiçados em vez de compreendidos, ensinados e incentivados a conduzir esse nosso amor no bom sentido.
Mais uma vez o Professor Edral teve aqui o seu "papel" negativo.
Só mais tarde compreendi melhor a sua maneira muito estranha de lidar com esta e outras situações. Embora este pormenor nada tenha de intrínseco com o que tenho para contar talvez não seja de todo inútil, quanto mais não seja senão por escrúpulos de exactidão, referir os boatos e comentários postos a correr, nomeadamente sobre a forma abusiva como o Edral abordava e mimava as meninas. Verdadeiro ou falso, dizia-se à boca cheia que um dia numa aula de Inglês, uma dessas meninas ao sentir-se assediada, deu um estalo na cara do professor de tal forma sonoro que se ouviu por toda a sala. Quando todos os alunos se viraram para esse lado, para constatarem do que se tratava, viram o Professor Edral, com a cara muito afogueada, sair-se airosamente dessa melindrosa situação dizendo para a aluna: “se continuas assim para a próxima levas mais”.
Pois este “professor”, do alto da sua integridade moral, logo que soube do nosso namoro transformou-se em polícia fazendo-nos uma perseguição implacável, quer no Colégio, quer fora dele. Foi, naturalmente, dizer ao pai da minha namorada que esta nossa relação estava a ser muito prejudicial para ela, que a desconcentrava e que poderia vir a diminuir o rendimento escolar, que até aí tinha sido exemplar. O pai dela, que era também guarda nacional republicano (GNR), um dia veio ter comigo quando me encontrava a conversar com um amigo na Avenida Marechal Gomes da Costa e perguntou-me, num tom autoritário e agressivo:
- Ouve lá, parece que andas a namoriscar com a Lena, é verdade?
Respondi-lhe tentando aparentar muita calma: e porque me pergunta a mim? Não é melhor perguntar-lhe directamente a ela?
- Olha! Olha-me este! Armado em esperto comigo, é!?
- Não Sr. Sousa, o que acho é que não devo ser eu a dizer-lhe. Deve conversar com a sua filha e ela com certeza dir-lhe-á a verdade!
- Com ela já eu falei! E de que maneira! A ti só quero avisar-te que se porventura algum dia te encontrar com ela vou correr-te a pontapé! Ouviste? Perguntou com ar ameaçador enquanto o seu colega de patrulha sorria com ar cínico e zombeteiro.
- O senhor está a falar-me como pai dela ou como GNR? Perguntei-lhe eu.
- Porquê?! Perguntou ele espantado com a minha questão.
- Porque se me está a ameaçar como cidadão pai dela então terei de lhe responder e agir do mesmo modo; ao agente de autoridade não posso responder, embora o senhor, enquanto tal, também tenha a obrigação de ser correcto comigo.
É bom lembrar que estávamos em finais dos anos sessenta, em que alguns agentes de autoridade, GNR e PSP, impunham a sua lei à base da força física, sem assegurar os direitos mínimos dos cidadãos.
Depois desta conversa estive sem ver e falar com a Lena durante uma semana. O pai bateu-lhe tanto e de tal maneira que ela teve que ficar em casa durante sete dias para recuperar dos hematomas e das dores físicas e psicológicas infligidas.
A partir dessa altura passámos a comunicar através das mensagens escritas num caderno de capas pretas, que deixávamos entregue, em mão, ao Toninho proprietário da Papelaria Académica. O Toninho era cego mas muito nosso amigo, confidente e conselheiro. Foi o único que nos apoiou. Foi também o único a
ver como éramos puros e genuínos nos nossos sentimentos. Recebia o caderno de um de nós e só o entregava ao outro, que por sua vez respondia à mensagem e o voltava a deixar.
Houve um período em que também nos encontrávamos à noite, por volta das vinte e uma horas, quando a Lena vinha à porta de casa receber a Leiteira, que era uma senhora que andava com um cântaro de latão, de porta em porta, a vender leite de ovelha ao quartilho. Eu ficava escondido até ela medir o leite e depois de se ir embora lá ia eu namoriscar uns minutos, poucos mas preciosos.
Numa dessas noites, já em pleno Inverno, estávamos a conversar bem no interior do jardim da casa dela. No instante em que ela me dizia que fugiria comigo de casa dos pais se eu quisesse e a levasse, o cão dela, o Rápido, começou a mexer muito o rabo e as orelhas, dando sinais claros de que o dono se aproximava.
- Foge! É o meu pai que está a chegar! Disse-me muito aflita e assustada a Lena.
- Mas para onde? Se fujo para o portão da casa até lá o teu pai pode entrar!
Então, sem outra alternativa, entrei rapidamente para o galinheiro que tinham construído, mesmo debaixo de uma grande cerejeira, enquanto ela se recolhia para dentro de casa. Escondi-me num dos cantos mais escuros e fundos do galinheiro, mas de forma tão desastrada que algumas galinhas se assustaram e começaram a fazer barulho, batendo com as asas.
Tudo isto no momento em que o Sr Sousa entrava pelo portão, se apercebia do barulho anormal vindo do galinheiro e ... se aproximava perigosamente!
Eu estava encolhido, sujo, cheio de frio e de medo! O Rápido, com saudades do dono, a correr do galinheiro para o portão e do portão para o dono, distraindo-o mas não o impedindo de continuar o seu caminho até ao galinheiro para ver o que se passava.
Até que, talvez por influência da estrela polar, saiu de casa a mãe da Lena e me salvou da situação perigosa em que me encontrava, berrando:
- Rápido! Que fazes? Pára! Deixa as galinhas em paz! E, virando-se para o marido exclamou admirada: Tu!? Então já vieste hoje? Pensei que o teu turno só acabava à meia-noite!
Logo que entraram para o interior da casa eu saí do galinheiro muito lentamente e com todo o cuidado para não assustar de novo as galinhas.

Na última noite em que estive com a Lena, neste mesmo local, os seus beijos sabiam a caldo verde! Mas sabiam tão bem! Enquanto me dizia:
- Vês aquela estrela? A que brilha mais? Virando-me o rosto e o olhar para a estrela polar! É com ela que eu falo quando tu não vens ver-me.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Escola C+S de Vila Flor

A Escola C+S de Vila Flor
Em 1980, encontrei na Escola C+S de Vila Flor, agora como colega, o antigo director do então Colégio Nossa Senhora de Sta Luzia, Padre Dimas Fais, que era também um dos seus proprietários. Esse Colégio era particular e funcionava exactamente neste mesmo edifício.
Leccionava, nesse ano lectivo, Educação Moral Religiosa e Católica mas tinha sido meu professor de Português e de Francês desde o 1º ao 5º ano do Liceu.
Ao recuar para os anos 60 recordava-me de que, como director desse Colégio, me tinha aplicado penas de suspensão das aulas durante 3 dias em duas situações diferentes, num total de seis dias. No seu papel de director, suspendeu-me sumariamente, sem qualquer inquérito, sem dar importância aos meus argumentos de então e sem me dar sequer a oportunidade de me defender de forma justa e imparcial.
Da primeira vez, resultou do facto de eu ter partido, sem querer, os óculos de um colega mais novo. Ao rematar à baliza fi-lo mal (como habitualmente) acertando na cara do Vítor Sil que se encontrava a uma pequena distância do lado esquerdo da baliza e … pimba, lá se foram os óculos!
O pior foi depois!!!
Descontrolado o Vítor (que teria 11 ou 12 anos) insultou-me, chamou-me filho da p... e eu, tentando acalmá-lo por um lado, mas zangado por outro, fui duro com ele ralhando-lhe por ele me estar a insultar. Furioso e a chorar, saiu dali e foi participar de mim à Direcção do Colégio. Como o Padre Cassiano não se encontrava, quem tomou conta da ocorrência foi o meu “amigo” professor Edral a quem chamávamos de doutor mas que não tinha, por essa altura, mais do que o antigo sétimo ano do liceu.
Tinha por ele uma clara e antiga antipatia que, aliás, era recíproca.
Foi meu professor de Português, Inglês e História ao longo de todo o 2º e 3º ciclo (do antigo 1º ao 5º ano do liceu). Exercia a actividade docente com a formação académica que tinha adquirido pela frequência do Seminário, em Bragança.
Este frustrado candidato a Padre teve sempre uma postura de prepotência e de autoritarismo primário para com os alunos das classes mais desfavorecidas e, pelo contrário, uma atitude de subserviência em relação aos alunos filhos das classes mais altas, a quem tratava humildemente por você. Estavam entre estes as filhas do Dr Artur Vaz, também nosso professor de Físico-Químicas e de Matemática; os filhos do Sr Celso Vaz, farmacêutico e irmão do Dr Artur; os filhos do Dr. Pimentel, médico e ex-presidente da Câmara, as filhas do Dr Silva, Veterinário e … também nosso professor de Ciências da Natureza, Geografia e Desenho e, ainda, os filhos dos ricos proprietários agrários da região.
Ele entrava invariavelmente nas salas de aula a trautear canções sem qualquer sentido visível ou conteúdo perceptível. As mais frequentes eram: “Oh do lírio branco, oh do lírio roxo, quem casar com um manco, tem que casar com um coxo … oh do lírio branco …oh do lírio roxo…quem casar com …; ou:“Aldininha se morreres a quem deixas o anel? Deixa-o aqui ao teu primo Manel… que bem precisa de… papel …Aldininha se morreres (…)”.
O Amândio Trigo de Carvalho d’Egas, meu companheiro e amigo, o Celso Bernardino, de Sampaio e eu éramos as suas vítimas predilectas. Muitas vezes utilizava a humilhação como arma. Costumava levantar o dedo indicador e dizer: um sustenido; depois levantava o dedo médio e dizia: dois sustenidos; levantava o anelar e dizia: três sustenidos e, de seguida, agredia por três vezes seguidas, com toda a força dos seus três dedos espetados, a cara de um de nós, rindo-se de gozo.
Quando soube quem ia tratar do assunto, senti-me desde logo condenado pelo acto recíproco de violência, mas normal entre jovens adolescentes e ainda por cima tratando-se de um caso isolado entre dois amigos que já éramos e ainda hoje somos, felizmente.
Para esse professor e para muitos outros dessa época quem gostava de jogar à bola assinava a sua sentença condenatória nos estudos, como se uma coisa tivesse a ver com a outra. Mas era assim, alimentado pela tacanhez de um professorado (?) que só via vírgulas, estrofes e equações. Futebol e desporto em geral eram sinónimos de burrice, de ignorância e de estupidez.
Ora, o “doutor” Edral, que foi simplesmente o pior professor e o pior cidadão sob o ponto de vista moral que eu tive a oportunidade de conhecer em toda a minha vida, agiu da forma mais pedagógica que ele conhecia. Ou seja, mesmo antes de ouvir a minha versão dos factos, telefonou para o pai do Vítor, que era funcionário na Repartição de Finanças e, também, para o Posto da Guarda Nacional Republicana. Em consequência, passados aí uns dez minutos, aparecem no Colégio dois Agentes da GNR e –claro- o pai do Vítor, naturalmente preocupado e sobretudo assustado pelo telefonema, enquanto que eu era ladeado pelos zelosos guardas, fui arrastado e levado para o Posto da GNR, para aí explicar o que tinha acontecido!!!
O pai do Vitor logo que tomou conhecimento in loco do problema teve a atitude pedagógica de acalmar o filho e, mostrando-se compreensivo para comigo, remeteu para mais tarde uma conversa que viria a ter com o meu pai. Posto isto foi-se embora para o seu local de trabalho.
No dia seguinte, fui chamado ao Gabinete do Director do Colégio que me pediu para ir chamar meu pai. Este, logo que pode, lá se deslocou e foi informado sem grandes delongas, na minha presença, que teria de pagar os óculos e eu teria que ficar um dia de castigo em casa por ter partido os óculos e ter, ainda por cima, maltratado a vítima.
O meu pai humildemente, como era seu timbre, aceitou sem retorquir, sem colocar nada em causa, sem saber se efectivamente eu tinha, ou não, culpa de tudo o que ocorreu.
Mas eu não aceitei e disse muito enervado e revoltado:
-Senhor Padre, isso é injusto! Se me deixar … posso explicar …eu chutei a bola para a baliza e o Vítor é que estava num local que não deveria estar! A bola bateu-lhe sem eu querer!
-Então por que razão lhe ralhaste e gritaste, em vez de o acalmar?
-Porque me insultou, me atirou com uma pedra e chamou nomes feios à minha mãe! E porque razão o Dr. Edral chamou o pai do Vítor e não chamaram o meu? Porque fui arrastado por dois guardas para o Posto da GNR? O meu pai paga as propinas neste Colégio! Tenho o direito de cá andar! Os problemas que surgem entre alunos devem ser resolvidos aqui dentro! Não sou criminoso nem cometi qualquer crime!
O Padre, espantado com meus os argumentos, virou-se para o meu pai e disse:
- Está a ver a insolência do seu filho? Pois, em vez de um dia, vai ficar 3 dias em casa! E virando-se para mim com três dedos da mão direita espetados na minha cara, vociferou:
- Estás a ouvir? Três …três … três dias! Ouviste bem?
O meu pai, sem protestar, sem me condenar mas também sem me defender, lá acabou por pagar os óculos.
Fiquei em casa os três dias com sentimentos de raiva e de revolta. E também com sentimentos de tristeza e de alegria. Tristeza por me terem privado injustamente daquilo a que tinha direito – a frequência das aulas - e de contentamento por ter ficado afastado dessa “gente”.