domingo, 14 de novembro de 2010

Vila Flor e o "reencontro" com a adolescência

Durante esses três longos dias senti-me terrivelmente dividido.
Se por um lado tinha a consciência tranquila e a esperança de que viria a superar esta má fase, por outro sentia-me inquieto, inseguro e com um profundo pessimismo em relação ao futuro.
Estes sentimentos ambivalentes de esperança e de pessimismo iriam repercutir-se e propagar-se por toda a minha adolescência e até mesmo pela idade adulta.
De facto, e sem querer ser piegas, acho que fui pouco ajudado nos momentos mais traumáticos, quer na idade infantil, quer na adolescência. Apesar disso quando caí, levantei-me sempre. Mas sozinho.
Três anos após aqueles acontecimentos, ainda neste colégio, vivi a minha primeira paixão. Um grande amor, platónico é certo, mas que vivi intensamente e que me deu mais momentos de tristeza do que de alegria.
Nós só queríamos estar juntos e sem incomodar ninguém! No entanto fomos perseguidos, ameaçados, castigados e injustiçados em vez de compreendidos, ensinados e incentivados a conduzir esse nosso amor no bom sentido.
Mais uma vez o Professor Edral teve aqui o seu "papel" negativo.
Só mais tarde compreendi melhor a sua maneira muito estranha de lidar com esta e outras situações. Embora este pormenor nada tenha de intrínseco com o que tenho para contar talvez não seja de todo inútil, quanto mais não seja senão por escrúpulos de exactidão, referir os boatos e comentários postos a correr, nomeadamente sobre a forma abusiva como o Edral abordava e mimava as meninas. Verdadeiro ou falso, dizia-se à boca cheia que um dia numa aula de Inglês, uma dessas meninas ao sentir-se assediada, deu um estalo na cara do professor de tal forma sonoro que se ouviu por toda a sala. Quando todos os alunos se viraram para esse lado, para constatarem do que se tratava, viram o Professor Edral, com a cara muito afogueada, sair-se airosamente dessa melindrosa situação dizendo para a aluna: “se continuas assim para a próxima levas mais”.
Pois este “professor”, do alto da sua integridade moral, logo que soube do nosso namoro transformou-se em polícia fazendo-nos uma perseguição implacável, quer no Colégio, quer fora dele. Foi, naturalmente, dizer ao pai da minha namorada que esta nossa relação estava a ser muito prejudicial para ela, que a desconcentrava e que poderia vir a diminuir o rendimento escolar, que até aí tinha sido exemplar. O pai dela, que era também guarda nacional republicano (GNR), um dia veio ter comigo quando me encontrava a conversar com um amigo na Avenida Marechal Gomes da Costa e perguntou-me, num tom autoritário e agressivo:
- Ouve lá, parece que andas a namoriscar com a Lena, é verdade?
Respondi-lhe tentando aparentar muita calma: e porque me pergunta a mim? Não é melhor perguntar-lhe directamente a ela?
- Olha! Olha-me este! Armado em esperto comigo, é!?
- Não Sr. Sousa, o que acho é que não devo ser eu a dizer-lhe. Deve conversar com a sua filha e ela com certeza dir-lhe-á a verdade!
- Com ela já eu falei! E de que maneira! A ti só quero avisar-te que se porventura algum dia te encontrar com ela vou correr-te a pontapé! Ouviste? Perguntou com ar ameaçador enquanto o seu colega de patrulha sorria com ar cínico e zombeteiro.
- O senhor está a falar-me como pai dela ou como GNR? Perguntei-lhe eu.
- Porquê?! Perguntou ele espantado com a minha questão.
- Porque se me está a ameaçar como cidadão pai dela então terei de lhe responder e agir do mesmo modo; ao agente de autoridade não posso responder, embora o senhor, enquanto tal, também tenha a obrigação de ser correcto comigo.
É bom lembrar que estávamos em finais dos anos sessenta, em que alguns agentes de autoridade, GNR e PSP, impunham a sua lei à base da força física, sem assegurar os direitos mínimos dos cidadãos.
Depois desta conversa estive sem ver e falar com a Lena durante uma semana. O pai bateu-lhe tanto e de tal maneira que ela teve que ficar em casa durante sete dias para recuperar dos hematomas e das dores físicas e psicológicas infligidas.
A partir dessa altura passámos a comunicar através das mensagens escritas num caderno de capas pretas, que deixávamos entregue, em mão, ao Toninho proprietário da Papelaria Académica. O Toninho era cego mas muito nosso amigo, confidente e conselheiro. Foi o único que nos apoiou. Foi também o único a
ver como éramos puros e genuínos nos nossos sentimentos. Recebia o caderno de um de nós e só o entregava ao outro, que por sua vez respondia à mensagem e o voltava a deixar.
Houve um período em que também nos encontrávamos à noite, por volta das vinte e uma horas, quando a Lena vinha à porta de casa receber a Leiteira, que era uma senhora que andava com um cântaro de latão, de porta em porta, a vender leite de ovelha ao quartilho. Eu ficava escondido até ela medir o leite e depois de se ir embora lá ia eu namoriscar uns minutos, poucos mas preciosos.
Numa dessas noites, já em pleno Inverno, estávamos a conversar bem no interior do jardim da casa dela. No instante em que ela me dizia que fugiria comigo de casa dos pais se eu quisesse e a levasse, o cão dela, o Rápido, começou a mexer muito o rabo e as orelhas, dando sinais claros de que o dono se aproximava.
- Foge! É o meu pai que está a chegar! Disse-me muito aflita e assustada a Lena.
- Mas para onde? Se fujo para o portão da casa até lá o teu pai pode entrar!
Então, sem outra alternativa, entrei rapidamente para o galinheiro que tinham construído, mesmo debaixo de uma grande cerejeira, enquanto ela se recolhia para dentro de casa. Escondi-me num dos cantos mais escuros e fundos do galinheiro, mas de forma tão desastrada que algumas galinhas se assustaram e começaram a fazer barulho, batendo com as asas.
Tudo isto no momento em que o Sr Sousa entrava pelo portão, se apercebia do barulho anormal vindo do galinheiro e ... se aproximava perigosamente!
Eu estava encolhido, sujo, cheio de frio e de medo! O Rápido, com saudades do dono, a correr do galinheiro para o portão e do portão para o dono, distraindo-o mas não o impedindo de continuar o seu caminho até ao galinheiro para ver o que se passava.
Até que, talvez por influência da estrela polar, saiu de casa a mãe da Lena e me salvou da situação perigosa em que me encontrava, berrando:
- Rápido! Que fazes? Pára! Deixa as galinhas em paz! E, virando-se para o marido exclamou admirada: Tu!? Então já vieste hoje? Pensei que o teu turno só acabava à meia-noite!
Logo que entraram para o interior da casa eu saí do galinheiro muito lentamente e com todo o cuidado para não assustar de novo as galinhas.

Na última noite em que estive com a Lena, neste mesmo local, os seus beijos sabiam a caldo verde! Mas sabiam tão bem! Enquanto me dizia:
- Vês aquela estrela? A que brilha mais? Virando-me o rosto e o olhar para a estrela polar! É com ela que eu falo quando tu não vens ver-me.

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