sábado, 20 de novembro de 2010

Vila Flor e o segundo castigo

A segunda vez que o Padre Cassiano Dimas Fais me castigou, também com três dias de suspensão, resultou de um acontecimento que ilustra fielmente a forma como a sociedade (o povo) dessa época aceitava, sem pestanejar, o poder da igreja e dos seus representantes. Por outro lado mostra a forma prepotente como esse poder era exercido em algumas situações.

O incidente aconteceu numa tarde de sábado, em Maio de 1970.
A música de um gira-discos animava os cinco ou seis pares que dançavam na sede do Vila Flor Spor Clube. O meu par tinha ido embora momentos antes com receio de que o pai descobrisse onde ela estava e o que andava a fazer. Encontrava-me, naquele momento, junto da porta de entrada da Sede quando, de repente, vejo passar uma bela rapariga de largas ancas e fartos peitos, com andar decidido e mais velha aí uns quatro ou cinco anos do que eu. Não resisti a mandar-lhe uns piropos. Sem a ofender, antes pelo contrário, para a galantear disse-lhe qualquer coisa como isto: “tens uma avançada melhor do que a do Benfica”! “És muito jeitosa”! "Queres vir dançar comigo?".
Ela olhou para mim e respondeu: És um malandreco! Pensas que não te conheço? Pensas que engatas as raparigas todas? Vou já dizer ao Senhor Padre!
Eu não sabia mas o Lelo Pinto, que estava a meu lado, logo me avisou que aquela rapariga era criada do padre Cassiano.
Mau, mau, então estou feito! Pensei.
Nessa mesma noite por volta da hora do jantar, apareceu em casa dos meus pais uma patrulha da GNR(!) acompanhados pelo sacristão(!) dizendo a meu pai para ir, sem demoras, a casa do padre e... para eu ir também.
Pelo caminho fui dizendo ao meu pai que já sabia a razão pela qual lá íamos. E contei-lhe o incidente dessa tarde em que eu tinha mandado uns piropos à criada do padre. Mas enfatizei o facto de não a ter maltratado, não lhe ter faltado ao respeito e, muito menos, ter sido mal-educado.
Logo que entrámos o Padre mandou sentar o meu pai numa cadeira que ficava ao seu lado direito mas num plano inferior ao seu.
A mim mandou-me ficar de pé e sem grandes rodeios, virando-se directamente para o meu pai, sentenciou:
-Pois aqui o seu filho tratou mal a minha criada que é para mim como da família! Deve educar melhor os seus filhos!
Virou-se para mim e disse: Vais ter que lhe pedir desculpa!
- Eu, não me contive e perguntei: Porquê? Que lhe fiz?
- Então não te meteste com ela dizendo que era muito boa?
- Não foi bem esse o termo. Mas era minha intenção gabá-la, elogiá-la e convidá-la para dançar.
- Com a minha criada ninguém se mete! Ouviste?
- Mas … se eu soubesse que era sua criada, mesmo sem a ter ofendido, nada lhe teria dito!
- Não quero saber! Vamos … pede-lhe desculpa! Já! Apontando o dedo indicador para a criada que entretanto tinha entrado para a pequena sala onde estávamos.
Olhei para a rapariga que tinha visto pela primeira vez nessa mesma tarde. Estava com o rosto ruborizado e com o olhar descido para o chão e senti-me também envergonhado pela situação em que ambos estávamos.
Mesmo assim perguntei-lhe:
- Eu ofendi-te? Prejudiquei-te? Diz a verdade!
Ela olhou para o padre e para o meu pai. Depois baixou de novo os seus grandes, lindos e tristes olhos para o chão e não me respondeu.
Mas o padre não desistiu insistindo:
- Tens que lhe pedir desculpa! Vamos … pede!
Eu, a tremer de revolta, virei-me para meu pai e pedi-lhe para me levar dali. A chorar supliquei-lhe:
- Pai, vamos embora daqui - nós não merecemos esta humilhação!
- Filho, pede desculpa e vamos embora! Respondeu ele.
- Mas, porquê? Porquê?
- Anda lá, não custa nada!
- Mas, pai! Só lhe quis dizer que era muito bonita! Que simpatizava com ela. Não tenho que pedir desculpa por isso.
- Bom, como não tenho a noite toda para aturar a tua má educação sai já daqui! Vai para a rua e espera lá pelo teu pai enquanto decido quantos dias vais ficar de castigo.
- Mas isso é uma injustiça! Eu tenho que ir às aulas! O meu pai paga as propinas para eu frequentar aquele colégio e o que aconteceu nada se relaciona com os meus estudos. Não tem o direito de aplicar esse castigo. E saí, sem olhar para trás, a correr e a chorar de raiva e de revolta. Fui directamente para casa e contei a minha mãe o que se tinha passado. Esta respondeu-me que deveria ter pedido desculpa pois o padre ainda podia vir a prejudicar o pai.
Passados alguns minutos lá chegou o meu pai, de chapéu na mão, com a sentença do Padre: três dias de suspensão das actividades lectivas!
- O quê? O que tem a ver a criada do padre com os meus estudos? Perguntei.
- Deixa lá filho não digas nada. Ele pode fazer com que eu perca o emprego.
Este foi sem dúvida um dos piores períodos que tive de percorrer e viver.
Para superar esta “crise” e estes episódios, que foram vividos e sentidos de forma intensa e dramática, tive de fazer um grande esforço. Atravessei momentos em que não sabia muito bem o que podia fazer para melhorar e dar a volta por cima. Mas agora sei que o segredo foi não ter baixado os braços e não ter deixado que essas dificuldades dessem cabo da minha alegria de viver, da minha família e da minha vida. Habituei-me a não gastar os meus dias com queixas e lamentações e (re)aprendi a viver sem algumas das coisas a que achava que tinha direito e, entretanto, me foram retiradas, ganhando com isso a possibilidade de desfrutar de outras ainda com mais potencialidades. Aprendi ainda a olhar para as pessoas, para os objectos, para os sítios, para os acontecimentos, com outros olhos, com outro sentido de descoberta.
Considero que, porventura, deste período saí mais forte e com mais capacidade de conseguir ver o lado positivo da vida mesmo quando tudo parece cinzento e nublado.

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