No decorrer do segundo período, num dia de nevoeiro densíssimo do mês de Março, levantei-me mesmo em cima da hora limite e entrei no carro ainda com uma maçã na mão, que comia gulosa e apressadamente.
Estávamos quase no fim do período e tinha estado a corrigir testes até muito tarde por sentir necessidade de os entregar aos alunos nesse mesmo dia, para terem a oportunidade de, em tempo útil, fazerem a sua auto-correcção.
Arco D. Dinis |
Entrei no carro que se encontrava estacionado no Largo da Fonte Romana, mesmo em frente ao Arco D. Dinis, liguei a ignição e disse ainda de boca cheia:
- Entra Vilares! Vamos, vamos que está na hora!
Este entrou e disse, com a sua característica maneira divertida e resmungona de falar:
- És sempre a mesma “coisa”!, sempre a mesma merda! Já estou à tua espera há mais de 10 minutos! Vai um cigarrito?
- Não! Obrigado, estou a tentar deixar de fumar! Respondi depois de lhe ter pedido desculpa pelo atraso
- Bô!? Desde quando?
- Desde a última vez que fumei, ou seja, desde as duas da manhã! Respondi tentando imprimir algum humor.
Um carro que "herdara" do meu pai no qual aprendera a conduzir e que já tinha muitas estórias engraçadas para contar.
E lá seguimos a nossa viagem quando de repente, a cerca de dois quilómetros de Carrazeda de Ansiães, logo a seguir a uma curva, eis que a menos de 20 metros surge do nevoeiro uma brigada da GNR que nos mandou parar. Tentei, imediatamente, parar o carro mas … quanto mais travava mais o carro andava e mais velocidade parecia ganhar!
- Cuidado… pára.. pára … traaaavaaaa... gritava aflito o Vilares! Olha que os atropelas! És doido?
Nem tempo tive para lhe dizer que o carro tinha ficado repentinamente sem travões.
Os agentes da GNR logo que viram o carro a precipitar-se perigosamente para cima deles fugiram rapidamente, cada um para seu lado da estrada.
Os agentes da GNR logo que viram o carro a precipitar-se perigosamente para cima deles fugiram rapidamente, cada um para seu lado da estrada.
Enquanto tentava parar o carro reduzindo para terceira, depois para segunda e utilizando simultaneamente o travão de mão, olhava pelo retrovisor e via que os soldados da GNR, depois de se salvarem do embate frontal, puxavam pelas armas – as velhinhas metralhadoras G3 - e apontavam-nas em direcção ao diabólico carro.
Quando consegui parar o carro, aí a uns bons 200 metros mais à frente, fiz-lhes sinal como que a recomendar-lhes para terem calma, enquanto recuava lentamente até junto dos atónitos e furiosos guardas.
Logo que chegámos, disparei:
- Desculpem! Mas antes de resolvermos este assunto … posso levar o meu colega à escola? Eu já volto e conversamos.
- Nem pensar! Então não viu que nos ia matando? Onde quer ir neste carro? Mostre lá os seus documentos!
- Desculpem! Mas … com a pressa que tive em sair de casa… bem… ahh… ahh… não trouxe documentos! Gaguejei.
- Sem documentos?! Nem o Bilhete de Identidade?
- Nada! Mas se me autorizarem, e depois de levar o meu colega à escola, eu vou buscar os documentos e esclarecemos este problema!
- Então é professor!? de quê?
- Biologia e Ciências da Natureza.
- Deve ser professor da Alice Gomes!
- Sim, sou!
- Bom …. bom … sendo assim … vá lá para as aulas e depois passe no posto da GNR para falar connosco! Mas vá devagar!
Posteriormente apresentei os documentos e as minhas desculpas. Fiquei também a saber que um dos guardas da GNR era o pai da Alice, minha aluna do 9º ano de escolaridade.
O resto do ano passou-se com algum interesse mas …viajando sempre no Citroën Dyane (veículo produzido entre 1967 e 1983 pela Citroën e que foi projectado para ser o sucessor do Citroën 2CV) do Manuel Vilares, que nunca mais aceitou viajar no velhinho Volkswagen.
O resto do ano passou-se com algum interesse mas …viajando sempre no Citroën Dyane (veículo produzido entre 1967 e 1983 pela Citroën e que foi projectado para ser o sucessor do Citroën 2CV) do Manuel Vilares, que nunca mais aceitou viajar no velhinho Volkswagen.
Gostei muito de trabalhar em Carrazeda, os alunos eram oriundos, em grande maioria, das classes menos privilegiadas, principalmente filhos de pequenos agricultores e de assalariados rurais.
Muitos deles quando chegavam à escola já vinham cansados por terem trabalhado muito naquele dia nas lides domésticas, ou nas hortas com os pais, ou ainda a levar o gado a pastar.
Os estudos e os trabalhos de casa (TPCs), normalmente não eram executados porque não tinham tempo. Mesmo que tivessem tempo, os seus familiares não conseguiam auxiliar nessa tarefa pois a maioria dos pais não sabia ler.
Como quase todos os alunos vinham das aldeias do Concelho utilizavam um vocabulário e um sotaque próprio e que aprenderam junto dos seus familiares e amigos.
Como quase todos os alunos vinham das aldeias do Concelho utilizavam um vocabulário e um sotaque próprio e que aprenderam junto dos seus familiares e amigos.
Era por essa razão que muitos deles se fechavam, não falavam com receio de serem criticados e ridicularizados pelos seus colegas e até por alguns professores.
Contava-se que num dos anos lectivos anteriores tinha trabalhado nesta escola uma professora de Língua Portuguesa, natural de Lisboa, e que implicava permanentemente com os alunos devido à sua pronúncia. Até que um deles, mais atrevido, lhe respondeu e fez uma pergunta:
- Está sempre a criticar o modo como eu falo e eu não sei falar de outra maneira, mas sabe a senhora professora quantas tetas tem uma vaca?
Aí, foi a professora a cair no ridículo perante a turma. Não sabia mesmo!
Aprendi com os meus alunos de Carrazeda que a Escola deveria trabalhar mais e melhor no sentido de aproveitar o conhecimento que os alunos trazem de casa, da vida familiar e do seu trabalho, para se enriquecer e estimular cada vez mais o seu interesse pela escola.
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