sábado, 20 de novembro de 2010

Vila Flor e o segundo castigo

A segunda vez que o Padre Cassiano Dimas Fais me castigou, também com três dias de suspensão, resultou de um acontecimento que ilustra fielmente a forma como a sociedade (o povo) dessa época aceitava, sem pestanejar, o poder da igreja e dos seus representantes. Por outro lado mostra a forma prepotente como esse poder era exercido em algumas situações.

O incidente aconteceu numa tarde de sábado, em Maio de 1970.
A música de um gira-discos animava os cinco ou seis pares que dançavam na sede do Vila Flor Spor Clube. O meu par tinha ido embora momentos antes com receio de que o pai descobrisse onde ela estava e o que andava a fazer. Encontrava-me, naquele momento, junto da porta de entrada da Sede quando, de repente, vejo passar uma bela rapariga de largas ancas e fartos peitos, com andar decidido e mais velha aí uns quatro ou cinco anos do que eu. Não resisti a mandar-lhe uns piropos. Sem a ofender, antes pelo contrário, para a galantear disse-lhe qualquer coisa como isto: “tens uma avançada melhor do que a do Benfica”! “És muito jeitosa”! "Queres vir dançar comigo?".
Ela olhou para mim e respondeu: És um malandreco! Pensas que não te conheço? Pensas que engatas as raparigas todas? Vou já dizer ao Senhor Padre!
Eu não sabia mas o Lelo Pinto, que estava a meu lado, logo me avisou que aquela rapariga era criada do padre Cassiano.
Mau, mau, então estou feito! Pensei.
Nessa mesma noite por volta da hora do jantar, apareceu em casa dos meus pais uma patrulha da GNR(!) acompanhados pelo sacristão(!) dizendo a meu pai para ir, sem demoras, a casa do padre e... para eu ir também.
Pelo caminho fui dizendo ao meu pai que já sabia a razão pela qual lá íamos. E contei-lhe o incidente dessa tarde em que eu tinha mandado uns piropos à criada do padre. Mas enfatizei o facto de não a ter maltratado, não lhe ter faltado ao respeito e, muito menos, ter sido mal-educado.
Logo que entrámos o Padre mandou sentar o meu pai numa cadeira que ficava ao seu lado direito mas num plano inferior ao seu.
A mim mandou-me ficar de pé e sem grandes rodeios, virando-se directamente para o meu pai, sentenciou:
-Pois aqui o seu filho tratou mal a minha criada que é para mim como da família! Deve educar melhor os seus filhos!
Virou-se para mim e disse: Vais ter que lhe pedir desculpa!
- Eu, não me contive e perguntei: Porquê? Que lhe fiz?
- Então não te meteste com ela dizendo que era muito boa?
- Não foi bem esse o termo. Mas era minha intenção gabá-la, elogiá-la e convidá-la para dançar.
- Com a minha criada ninguém se mete! Ouviste?
- Mas … se eu soubesse que era sua criada, mesmo sem a ter ofendido, nada lhe teria dito!
- Não quero saber! Vamos … pede-lhe desculpa! Já! Apontando o dedo indicador para a criada que entretanto tinha entrado para a pequena sala onde estávamos.
Olhei para a rapariga que tinha visto pela primeira vez nessa mesma tarde. Estava com o rosto ruborizado e com o olhar descido para o chão e senti-me também envergonhado pela situação em que ambos estávamos.
Mesmo assim perguntei-lhe:
- Eu ofendi-te? Prejudiquei-te? Diz a verdade!
Ela olhou para o padre e para o meu pai. Depois baixou de novo os seus grandes, lindos e tristes olhos para o chão e não me respondeu.
Mas o padre não desistiu insistindo:
- Tens que lhe pedir desculpa! Vamos … pede!
Eu, a tremer de revolta, virei-me para meu pai e pedi-lhe para me levar dali. A chorar supliquei-lhe:
- Pai, vamos embora daqui - nós não merecemos esta humilhação!
- Filho, pede desculpa e vamos embora! Respondeu ele.
- Mas, porquê? Porquê?
- Anda lá, não custa nada!
- Mas, pai! Só lhe quis dizer que era muito bonita! Que simpatizava com ela. Não tenho que pedir desculpa por isso.
- Bom, como não tenho a noite toda para aturar a tua má educação sai já daqui! Vai para a rua e espera lá pelo teu pai enquanto decido quantos dias vais ficar de castigo.
- Mas isso é uma injustiça! Eu tenho que ir às aulas! O meu pai paga as propinas para eu frequentar aquele colégio e o que aconteceu nada se relaciona com os meus estudos. Não tem o direito de aplicar esse castigo. E saí, sem olhar para trás, a correr e a chorar de raiva e de revolta. Fui directamente para casa e contei a minha mãe o que se tinha passado. Esta respondeu-me que deveria ter pedido desculpa pois o padre ainda podia vir a prejudicar o pai.
Passados alguns minutos lá chegou o meu pai, de chapéu na mão, com a sentença do Padre: três dias de suspensão das actividades lectivas!
- O quê? O que tem a ver a criada do padre com os meus estudos? Perguntei.
- Deixa lá filho não digas nada. Ele pode fazer com que eu perca o emprego.
Este foi sem dúvida um dos piores períodos que tive de percorrer e viver.
Para superar esta “crise” e estes episódios, que foram vividos e sentidos de forma intensa e dramática, tive de fazer um grande esforço. Atravessei momentos em que não sabia muito bem o que podia fazer para melhorar e dar a volta por cima. Mas agora sei que o segredo foi não ter baixado os braços e não ter deixado que essas dificuldades dessem cabo da minha alegria de viver, da minha família e da minha vida. Habituei-me a não gastar os meus dias com queixas e lamentações e (re)aprendi a viver sem algumas das coisas a que achava que tinha direito e, entretanto, me foram retiradas, ganhando com isso a possibilidade de desfrutar de outras ainda com mais potencialidades. Aprendi ainda a olhar para as pessoas, para os objectos, para os sítios, para os acontecimentos, com outros olhos, com outro sentido de descoberta.
Considero que, porventura, deste período saí mais forte e com mais capacidade de conseguir ver o lado positivo da vida mesmo quando tudo parece cinzento e nublado.

domingo, 14 de novembro de 2010

Vila Flor e o "reencontro" com a adolescência

Durante esses três longos dias senti-me terrivelmente dividido.
Se por um lado tinha a consciência tranquila e a esperança de que viria a superar esta má fase, por outro sentia-me inquieto, inseguro e com um profundo pessimismo em relação ao futuro.
Estes sentimentos ambivalentes de esperança e de pessimismo iriam repercutir-se e propagar-se por toda a minha adolescência e até mesmo pela idade adulta.
De facto, e sem querer ser piegas, acho que fui pouco ajudado nos momentos mais traumáticos, quer na idade infantil, quer na adolescência. Apesar disso quando caí, levantei-me sempre. Mas sozinho.
Três anos após aqueles acontecimentos, ainda neste colégio, vivi a minha primeira paixão. Um grande amor, platónico é certo, mas que vivi intensamente e que me deu mais momentos de tristeza do que de alegria.
Nós só queríamos estar juntos e sem incomodar ninguém! No entanto fomos perseguidos, ameaçados, castigados e injustiçados em vez de compreendidos, ensinados e incentivados a conduzir esse nosso amor no bom sentido.
Mais uma vez o Professor Edral teve aqui o seu "papel" negativo.
Só mais tarde compreendi melhor a sua maneira muito estranha de lidar com esta e outras situações. Embora este pormenor nada tenha de intrínseco com o que tenho para contar talvez não seja de todo inútil, quanto mais não seja senão por escrúpulos de exactidão, referir os boatos e comentários postos a correr, nomeadamente sobre a forma abusiva como o Edral abordava e mimava as meninas. Verdadeiro ou falso, dizia-se à boca cheia que um dia numa aula de Inglês, uma dessas meninas ao sentir-se assediada, deu um estalo na cara do professor de tal forma sonoro que se ouviu por toda a sala. Quando todos os alunos se viraram para esse lado, para constatarem do que se tratava, viram o Professor Edral, com a cara muito afogueada, sair-se airosamente dessa melindrosa situação dizendo para a aluna: “se continuas assim para a próxima levas mais”.
Pois este “professor”, do alto da sua integridade moral, logo que soube do nosso namoro transformou-se em polícia fazendo-nos uma perseguição implacável, quer no Colégio, quer fora dele. Foi, naturalmente, dizer ao pai da minha namorada que esta nossa relação estava a ser muito prejudicial para ela, que a desconcentrava e que poderia vir a diminuir o rendimento escolar, que até aí tinha sido exemplar. O pai dela, que era também guarda nacional republicano (GNR), um dia veio ter comigo quando me encontrava a conversar com um amigo na Avenida Marechal Gomes da Costa e perguntou-me, num tom autoritário e agressivo:
- Ouve lá, parece que andas a namoriscar com a Lena, é verdade?
Respondi-lhe tentando aparentar muita calma: e porque me pergunta a mim? Não é melhor perguntar-lhe directamente a ela?
- Olha! Olha-me este! Armado em esperto comigo, é!?
- Não Sr. Sousa, o que acho é que não devo ser eu a dizer-lhe. Deve conversar com a sua filha e ela com certeza dir-lhe-á a verdade!
- Com ela já eu falei! E de que maneira! A ti só quero avisar-te que se porventura algum dia te encontrar com ela vou correr-te a pontapé! Ouviste? Perguntou com ar ameaçador enquanto o seu colega de patrulha sorria com ar cínico e zombeteiro.
- O senhor está a falar-me como pai dela ou como GNR? Perguntei-lhe eu.
- Porquê?! Perguntou ele espantado com a minha questão.
- Porque se me está a ameaçar como cidadão pai dela então terei de lhe responder e agir do mesmo modo; ao agente de autoridade não posso responder, embora o senhor, enquanto tal, também tenha a obrigação de ser correcto comigo.
É bom lembrar que estávamos em finais dos anos sessenta, em que alguns agentes de autoridade, GNR e PSP, impunham a sua lei à base da força física, sem assegurar os direitos mínimos dos cidadãos.
Depois desta conversa estive sem ver e falar com a Lena durante uma semana. O pai bateu-lhe tanto e de tal maneira que ela teve que ficar em casa durante sete dias para recuperar dos hematomas e das dores físicas e psicológicas infligidas.
A partir dessa altura passámos a comunicar através das mensagens escritas num caderno de capas pretas, que deixávamos entregue, em mão, ao Toninho proprietário da Papelaria Académica. O Toninho era cego mas muito nosso amigo, confidente e conselheiro. Foi o único que nos apoiou. Foi também o único a
ver como éramos puros e genuínos nos nossos sentimentos. Recebia o caderno de um de nós e só o entregava ao outro, que por sua vez respondia à mensagem e o voltava a deixar.
Houve um período em que também nos encontrávamos à noite, por volta das vinte e uma horas, quando a Lena vinha à porta de casa receber a Leiteira, que era uma senhora que andava com um cântaro de latão, de porta em porta, a vender leite de ovelha ao quartilho. Eu ficava escondido até ela medir o leite e depois de se ir embora lá ia eu namoriscar uns minutos, poucos mas preciosos.
Numa dessas noites, já em pleno Inverno, estávamos a conversar bem no interior do jardim da casa dela. No instante em que ela me dizia que fugiria comigo de casa dos pais se eu quisesse e a levasse, o cão dela, o Rápido, começou a mexer muito o rabo e as orelhas, dando sinais claros de que o dono se aproximava.
- Foge! É o meu pai que está a chegar! Disse-me muito aflita e assustada a Lena.
- Mas para onde? Se fujo para o portão da casa até lá o teu pai pode entrar!
Então, sem outra alternativa, entrei rapidamente para o galinheiro que tinham construído, mesmo debaixo de uma grande cerejeira, enquanto ela se recolhia para dentro de casa. Escondi-me num dos cantos mais escuros e fundos do galinheiro, mas de forma tão desastrada que algumas galinhas se assustaram e começaram a fazer barulho, batendo com as asas.
Tudo isto no momento em que o Sr Sousa entrava pelo portão, se apercebia do barulho anormal vindo do galinheiro e ... se aproximava perigosamente!
Eu estava encolhido, sujo, cheio de frio e de medo! O Rápido, com saudades do dono, a correr do galinheiro para o portão e do portão para o dono, distraindo-o mas não o impedindo de continuar o seu caminho até ao galinheiro para ver o que se passava.
Até que, talvez por influência da estrela polar, saiu de casa a mãe da Lena e me salvou da situação perigosa em que me encontrava, berrando:
- Rápido! Que fazes? Pára! Deixa as galinhas em paz! E, virando-se para o marido exclamou admirada: Tu!? Então já vieste hoje? Pensei que o teu turno só acabava à meia-noite!
Logo que entraram para o interior da casa eu saí do galinheiro muito lentamente e com todo o cuidado para não assustar de novo as galinhas.

Na última noite em que estive com a Lena, neste mesmo local, os seus beijos sabiam a caldo verde! Mas sabiam tão bem! Enquanto me dizia:
- Vês aquela estrela? A que brilha mais? Virando-me o rosto e o olhar para a estrela polar! É com ela que eu falo quando tu não vens ver-me.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Escola C+S de Vila Flor

A Escola C+S de Vila Flor
Em 1980, encontrei na Escola C+S de Vila Flor, agora como colega, o antigo director do então Colégio Nossa Senhora de Sta Luzia, Padre Dimas Fais, que era também um dos seus proprietários. Esse Colégio era particular e funcionava exactamente neste mesmo edifício.
Leccionava, nesse ano lectivo, Educação Moral Religiosa e Católica mas tinha sido meu professor de Português e de Francês desde o 1º ao 5º ano do Liceu.
Ao recuar para os anos 60 recordava-me de que, como director desse Colégio, me tinha aplicado penas de suspensão das aulas durante 3 dias em duas situações diferentes, num total de seis dias. No seu papel de director, suspendeu-me sumariamente, sem qualquer inquérito, sem dar importância aos meus argumentos de então e sem me dar sequer a oportunidade de me defender de forma justa e imparcial.
Da primeira vez, resultou do facto de eu ter partido, sem querer, os óculos de um colega mais novo. Ao rematar à baliza fi-lo mal (como habitualmente) acertando na cara do Vítor Sil que se encontrava a uma pequena distância do lado esquerdo da baliza e … pimba, lá se foram os óculos!
O pior foi depois!!!
Descontrolado o Vítor (que teria 11 ou 12 anos) insultou-me, chamou-me filho da p... e eu, tentando acalmá-lo por um lado, mas zangado por outro, fui duro com ele ralhando-lhe por ele me estar a insultar. Furioso e a chorar, saiu dali e foi participar de mim à Direcção do Colégio. Como o Padre Cassiano não se encontrava, quem tomou conta da ocorrência foi o meu “amigo” professor Edral a quem chamávamos de doutor mas que não tinha, por essa altura, mais do que o antigo sétimo ano do liceu.
Tinha por ele uma clara e antiga antipatia que, aliás, era recíproca.
Foi meu professor de Português, Inglês e História ao longo de todo o 2º e 3º ciclo (do antigo 1º ao 5º ano do liceu). Exercia a actividade docente com a formação académica que tinha adquirido pela frequência do Seminário, em Bragança.
Este frustrado candidato a Padre teve sempre uma postura de prepotência e de autoritarismo primário para com os alunos das classes mais desfavorecidas e, pelo contrário, uma atitude de subserviência em relação aos alunos filhos das classes mais altas, a quem tratava humildemente por você. Estavam entre estes as filhas do Dr Artur Vaz, também nosso professor de Físico-Químicas e de Matemática; os filhos do Sr Celso Vaz, farmacêutico e irmão do Dr Artur; os filhos do Dr. Pimentel, médico e ex-presidente da Câmara, as filhas do Dr Silva, Veterinário e … também nosso professor de Ciências da Natureza, Geografia e Desenho e, ainda, os filhos dos ricos proprietários agrários da região.
Ele entrava invariavelmente nas salas de aula a trautear canções sem qualquer sentido visível ou conteúdo perceptível. As mais frequentes eram: “Oh do lírio branco, oh do lírio roxo, quem casar com um manco, tem que casar com um coxo … oh do lírio branco …oh do lírio roxo…quem casar com …; ou:“Aldininha se morreres a quem deixas o anel? Deixa-o aqui ao teu primo Manel… que bem precisa de… papel …Aldininha se morreres (…)”.
O Amândio Trigo de Carvalho d’Egas, meu companheiro e amigo, o Celso Bernardino, de Sampaio e eu éramos as suas vítimas predilectas. Muitas vezes utilizava a humilhação como arma. Costumava levantar o dedo indicador e dizer: um sustenido; depois levantava o dedo médio e dizia: dois sustenidos; levantava o anelar e dizia: três sustenidos e, de seguida, agredia por três vezes seguidas, com toda a força dos seus três dedos espetados, a cara de um de nós, rindo-se de gozo.
Quando soube quem ia tratar do assunto, senti-me desde logo condenado pelo acto recíproco de violência, mas normal entre jovens adolescentes e ainda por cima tratando-se de um caso isolado entre dois amigos que já éramos e ainda hoje somos, felizmente.
Para esse professor e para muitos outros dessa época quem gostava de jogar à bola assinava a sua sentença condenatória nos estudos, como se uma coisa tivesse a ver com a outra. Mas era assim, alimentado pela tacanhez de um professorado (?) que só via vírgulas, estrofes e equações. Futebol e desporto em geral eram sinónimos de burrice, de ignorância e de estupidez.
Ora, o “doutor” Edral, que foi simplesmente o pior professor e o pior cidadão sob o ponto de vista moral que eu tive a oportunidade de conhecer em toda a minha vida, agiu da forma mais pedagógica que ele conhecia. Ou seja, mesmo antes de ouvir a minha versão dos factos, telefonou para o pai do Vítor, que era funcionário na Repartição de Finanças e, também, para o Posto da Guarda Nacional Republicana. Em consequência, passados aí uns dez minutos, aparecem no Colégio dois Agentes da GNR e –claro- o pai do Vítor, naturalmente preocupado e sobretudo assustado pelo telefonema, enquanto que eu era ladeado pelos zelosos guardas, fui arrastado e levado para o Posto da GNR, para aí explicar o que tinha acontecido!!!
O pai do Vitor logo que tomou conhecimento in loco do problema teve a atitude pedagógica de acalmar o filho e, mostrando-se compreensivo para comigo, remeteu para mais tarde uma conversa que viria a ter com o meu pai. Posto isto foi-se embora para o seu local de trabalho.
No dia seguinte, fui chamado ao Gabinete do Director do Colégio que me pediu para ir chamar meu pai. Este, logo que pode, lá se deslocou e foi informado sem grandes delongas, na minha presença, que teria de pagar os óculos e eu teria que ficar um dia de castigo em casa por ter partido os óculos e ter, ainda por cima, maltratado a vítima.
O meu pai humildemente, como era seu timbre, aceitou sem retorquir, sem colocar nada em causa, sem saber se efectivamente eu tinha, ou não, culpa de tudo o que ocorreu.
Mas eu não aceitei e disse muito enervado e revoltado:
-Senhor Padre, isso é injusto! Se me deixar … posso explicar …eu chutei a bola para a baliza e o Vítor é que estava num local que não deveria estar! A bola bateu-lhe sem eu querer!
-Então por que razão lhe ralhaste e gritaste, em vez de o acalmar?
-Porque me insultou, me atirou com uma pedra e chamou nomes feios à minha mãe! E porque razão o Dr. Edral chamou o pai do Vítor e não chamaram o meu? Porque fui arrastado por dois guardas para o Posto da GNR? O meu pai paga as propinas neste Colégio! Tenho o direito de cá andar! Os problemas que surgem entre alunos devem ser resolvidos aqui dentro! Não sou criminoso nem cometi qualquer crime!
O Padre, espantado com meus os argumentos, virou-se para o meu pai e disse:
- Está a ver a insolência do seu filho? Pois, em vez de um dia, vai ficar 3 dias em casa! E virando-se para mim com três dedos da mão direita espetados na minha cara, vociferou:
- Estás a ouvir? Três …três … três dias! Ouviste bem?
O meu pai, sem protestar, sem me condenar mas também sem me defender, lá acabou por pagar os óculos.
Fiquei em casa os três dias com sentimentos de raiva e de revolta. E também com sentimentos de tristeza e de alegria. Tristeza por me terem privado injustamente daquilo a que tinha direito – a frequência das aulas - e de contentamento por ter ficado afastado dessa “gente”. 

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Vila Flor, 1980-1983

Durante este período desenvolvi as minhas actividades lectivas, com grande entusiasmo e interesse, na escola C+S de Vila Flor, onde tinha sido colocado em resultado do concurso de professores a nível nacional. O edifício era o mesmo onde alguns anos antes tinha sido aluno no então chamado Colégio Nossa Senhora de Sta Luzia.

Vila Flor é a minha terra adoptiva.
Fui viver e estudar para esta localidade em 1960, quando tinha apenas sete anos de idade, em consequência dos acontecimentos atrás descritos e que envolveram toda a minha família.
Gosto de muitos sítios do meu país mas de nenhum gosto tanto como desta linda e pacata vila! O ambiente, o clima, a natureza e a população ofereceram-me, naquele tempo, condições especiais de vida que fizeram com que me apaixonasse, para sempre, por Vila Flor.
E porque foi aqui que fiz a passagem para a adolescência e para o estado adulto ficou para sempre a minha terra. O meu sítio. A minha referência geográfica. Adorei viver em Vila Flor.
clique para ver imagem em grande (dia e noite)Nessa época era um local tranquilo, onde se podia brincar nos campos circundantes, jogar à bola na minha rua e no largo da Fonte Romana, com os amigos (o Artur “Alfaiate”, o Mário “Quinó”, o Abel “Guarda-rios”, o Manel “Coelho”, o João “Chupeto”, o Tó Zé “Palmeirão”, por vezes, o Tino Navarro que vinha da rua de Santa Luzia e tantos outros. Eu tinha por alcunha o "Racha-a-Lebre" ou "RAXAlebre", em alternativa era chamado de “Bernardo”, ou mesmo "Benardo". Era ao gosto de cada um ou conforme dava mais jeito. Ninguém ficava chateado com isso.
Outra das nossas ocupações desse tempo era a jogar “hóquei”, utilizando os troncos das couves fazendo de stick e papeis de cartão embrulhados em meias de nylon, fazendo de bola. Também gostávamos de apanhar pássaros ou de “ir aos ninhos” como dizia o meu instrutor nessa matéria que era o meu vizinho Quim “Chupeto”, irmão do João, ou jogar aos cowboys e aos índios, na muralha da Vila e no Arco D. Dinis, ou ainda, apanhar fruta em pomares alheios, sobretudo na Quinta da Paz.
Fazíamos tudo isto num clima de liberdade e segurança.
O meu pai a única condição que me impunha era a de chegar a casa antes do “Toque das Trindades, ou então antes de anoitecer.
Vila Flor, merece, por tudo isso, uma referência especial.
É sede do Concelho e de Comarca. Pertence ao Distrito de Bragança e à Diocese de Bragança e Miranda. Está situada bem no centro de Trás-os-Montes e Alto-Douro, entre os rios Tua e Sabor, que desaguam no Douro. À sua volta o terreno é ondeado e fica entre planaltos, que vão dos 500 a 850 m, e diversos vales e extensões de baixa altitude (cerca de 200 a 300 m).
É uma região onde o frio do Inverno transmontano fica mais temperado e o verão é caracterizado por um longo período de seca, que se estende de Maio a Outubro. Por apresentar estas características é conhecida por Terra Quente Transmontana. Os solos são eminentemente xistosos o que aliado às características climáticas permitem as típicas culturas mediterrânicas: oliveira, vinha, amendoeira e sobreiro.
A cerca de 500 Km de Lisboa, 200 do Porto e 200 de Salamanca ou Orense, em Espanha, os acessos a esta região não são melhorados como deviam o que a torna cada vez mais "distante" do litoral.
A variedade da paisagem satisfaz a ânsia de ver uma terra onde se pressente que o homem não quis ainda dominar completamente a natureza. Por isso a caça abundava nessa época (perdiz, lebre, coelho e codorniz) nas encostas e cabeços dos montes ou nas encostas do Douro, do Tua ou do Sabor.
A vida social num meio urbano como este estendia-se entre a casa, o emprego ou o café.
A azáfama da chegada e partida dos alunos e professores às escolas era o grande movimento do dia-a-dia. E a feira quinzenal era o grande dia de negócios, de encontrar os amigos de outras aldeias, de ir às repartições públicas ou ao banco. As aldeias do concelho nesse dia esvaziavam-se. Nestas, o ritmo não é semanal, mas anual como o ciclo da natureza. A amêndoa em Setembro, a vindima em Outubro, a apanha da azeitona lá para Janeiro, a ceifa do cereal em Junho e a descasca da cortiça de Junho a Agosto, ou as lavras e sementeiras do Outono ou Primavera são os grandes acontecimentos do ano a que infelizmente se vieram juntar os cíclicos incêndios de verão e a grande desertificação humana, que se acentua cada vez mais.
As festas, que se distribuíam consoante os seus santos padroeiros ao longo do ano, era uso concentrarem-se no findar das colheitas agrícolas. No período referenciado, era o regresso dos emigrantes que lhes marcava a data pois, era a altura em que se compravam terrenos, se convivia com a família ausente, se cambiava dinheiro. Era uma movimentação constante que só terminava nos primeiros dias de Setembro, quando recomeçavam os ardores dos trabalhos agrícolas.
Como em muitas outras terras também aqui o povo foi descobrindo técnicas próprias para fazer os seus pertences, fabricar as suas alfaias e utensílios, equipar a sua habitação e produzir bens para venda assim o seu artesanato é conhecido, principalmente pelas tecelagens, rendas, cestos, funilaria e latoaria.
É a terra onde não há horas! Nos cafés, que substituíram as tabernas, conversam os homens sobre as ocorrências locais.
O falar rítmico e entoado marcado pelo "tch" e pelo "ô" como na frequente interjeição "bô" é das características mais persistentes e típicas da região. E a tradicional franqueza e hospitalidade continuavam a sentir-se quando ao entrar na porta aberta de qualquer casa de aldeia se ouvia lá do fundo alguém dizer: "Entre quem é "!
A gastronomia da região é conhecida pelas alheiras, chouriço doce, cabrito assado, pão centeio e folares, queijo e o famoso vinho da região.
Vila Flor entrou para a História com o rei D. Dinis, que ao passar pela pequena povoação chamada Póvoa de Além-Sabor quando se dirigia para a raia mirandesa a receber a noiva (Isabel de Aragão), encantado com a sua formosura a designou Vila Flor, deu-lhe foral a 24 de Maio de 1286 e fez construir um castelo e muralhas com cinco portas (a 1ª tinha o nome do monarca e é a única relíquia que resta da antiga muralha). D. Manuel outorgou-lhe foral novo a 24 de Maio de 1512. Com a expulsão dos judeus, no reinado do Venturoso, Vila Flor deixou de ser a Vila importante e rica, das mais prósperas em toda a província transmontana, pela sua indústria e actividade comercial.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

No segundo período lectivo, em Carrazeda de Ansiães

No decorrer do segundo período, num dia de nevoeiro densíssimo do mês de Março, levantei-me mesmo em cima da hora limite e entrei no carro ainda com uma maçã na mão, que comia gulosa e apressadamente.
Estávamos quase no fim do período e tinha estado a corrigir testes até muito tarde por sentir necessidade de os entregar aos alunos nesse mesmo dia, para terem a oportunidade de, em tempo útil, fazerem a sua auto-correcção.
Arco D. Dinis
Nesse tempo deslocava-me diariamente de Vila Flor que fica a cerca de dezasseis quilómetros de distância da escola. Normalmente percorria essa distância na companhia de um colega e amigo levando o carro uma semana um e na semana seguinte o outro. Pelo menos era o que estava combinado até certa altura.
Entrei no carro que se encontrava estacionado no Largo da Fonte Romana, mesmo em frente ao Arco D. Dinis, liguei a ignição e disse ainda de boca cheia:
- Entra Vilares! Vamos, vamos que está na hora!
Este entrou e disse, com a sua característica maneira divertida e resmungona de falar:
- És sempre a mesma “coisa”!, sempre a mesma merda! Já estou à tua espera há mais de 10 minutos! Vai um cigarrito?
- Não! Obrigado, estou a tentar deixar de fumar! Respondi depois de lhe ter pedido desculpa pelo atraso
- Bô!? Desde quando?
- Desde a última vez que fumei, ou seja, desde as duas da manhã! Respondi tentando imprimir algum humor.
E lá seguimos fazendo a habitual viagem de todos os dias no Volkswagen carocha 1200, de 1962.
Um carro que "herdara" do meu pai no qual aprendera a conduzir e que já tinha muitas estórias engraçadas para contar.
E lá seguimos a nossa viagem quando de repente, a cerca de dois quilómetros de Carrazeda de Ansiães, logo a seguir a uma curva, eis que a menos de 20 metros surge do nevoeiro uma brigada da GNR que nos mandou parar. Tentei, imediatamente, parar o carro mas … quanto mais travava mais o carro andava e mais velocidade parecia ganhar!
- Cuidado… pára.. pára … traaaavaaaa... gritava aflito o Vilares! Olha que os atropelas! És doido?
Nem tempo tive para lhe dizer que o carro tinha ficado repentinamente sem travões.
Os agentes da GNR logo que viram o carro a precipitar-se perigosamente para cima deles fugiram rapidamente, cada um para seu lado da estrada.
Enquanto tentava parar o carro reduzindo para terceira, depois para segunda e utilizando simultaneamente o travão de mão, olhava pelo retrovisor e via que os soldados da GNR, depois de se salvarem do embate frontal, puxavam pelas armas – as velhinhas metralhadoras G3 - e apontavam-nas em direcção ao diabólico carro.
Quando consegui parar o carro, aí a uns bons 200 metros mais à frente, fiz-lhes sinal como que a recomendar-lhes para terem calma, enquanto recuava lentamente até junto dos atónitos e furiosos guardas.
Logo que chegámos, disparei:
- Desculpem! Mas antes de resolvermos este assunto … posso levar o meu colega à escola? Eu já volto e conversamos.
- Nem pensar! Então não viu que nos ia matando? Onde quer ir neste carro? Mostre lá os seus documentos!
- Desculpem! Mas … com a pressa que tive em sair de casa… bem… ahh… ahh… não trouxe documentos! Gaguejei.
- Sem documentos?! Nem o Bilhete de Identidade?
- Nada! Mas se me autorizarem, e depois de levar o meu colega à escola, eu vou buscar os documentos e esclarecemos este problema!
- Então é professor!? de quê?
- Biologia e Ciências da Natureza.
- Deve ser professor da Alice Gomes!
- Sim, sou!
- Bom …. bom … sendo assim … vá lá para as aulas e depois passe no posto da GNR para falar connosco! Mas vá devagar!
Posteriormente apresentei os documentos e as minhas desculpas. Fiquei também a saber que um dos guardas da GNR era o pai da Alice, minha aluna do 9º ano de escolaridade.
O resto do ano passou-se com algum interesse mas …viajando sempre no Citroën Dyane (veículo produzido entre 1967 e 1983 pela Citroën e que foi projectado para ser o sucessor do Citroën 2CV) do Manuel Vilares, que nunca mais aceitou viajar no velhinho Volkswagen.
Gostei muito de trabalhar em Carrazeda, os alunos eram oriundos, em grande maioria, das classes menos privilegiadas, principalmente filhos de pequenos agricultores e de assalariados rurais.
Muitos deles quando chegavam à escola já vinham cansados por terem trabalhado muito naquele dia nas lides domésticas, ou nas hortas com os pais, ou ainda a levar o gado a pastar.
Os estudos e os trabalhos de casa (TPCs), normalmente não eram executados porque não tinham tempo. Mesmo que tivessem tempo, os seus familiares não conseguiam auxiliar nessa tarefa pois a maioria dos pais não sabia ler.
Como quase todos os alunos vinham das aldeias do Concelho utilizavam um vocabulário e um sotaque próprio e que aprenderam junto dos seus familiares e amigos.
Era por essa razão que muitos deles se fechavam, não falavam com receio de serem criticados e ridicularizados pelos seus colegas e até por alguns professores.
Contava-se que num dos anos lectivos anteriores tinha trabalhado nesta escola uma professora de Língua Portuguesa, natural de Lisboa, e que implicava permanentemente com os alunos devido à sua pronúncia. Até que um deles, mais atrevido, lhe respondeu e fez uma pergunta:
- Está sempre a criticar o modo como eu falo e eu não sei falar de outra maneira, mas sabe a senhora professora quantas tetas tem uma vaca?
Aí, foi a professora a cair no ridículo perante a turma. Não sabia mesmo!
Aprendi com os meus alunos de Carrazeda que a Escola deveria trabalhar mais e melhor no sentido de aproveitar o conhecimento que os alunos trazem de casa, da vida familiar e do seu trabalho, para se enriquecer e estimular cada vez mais o seu interesse pela escola.