domingo, 26 de setembro de 2010

A praça Deu-la-Deu Martins

Regressando à Praça que tem o nome de uma das grandes heroínas de Monção – Deu-la-Deu Martins!
Fiquei fascinado com a lenda sobre esta mulher que nos conta a forma inteligente e ardilosa como ajudou a vencer os Castelhanos numa das vezes em que estes cercaram a praça de Monção e, não podendo forçar as portas, pretendiam fazer rendê-la pela fome.
Quando estava já cozida a última fornada de pão de que dispunha dentro da Vila, Deu-la-Deu Martins atirou-os da muralha, bradando aos inimigos: "porque deveis ter falta de pão, nós repartimos convosco aquele que nos sobra".
O inimigo, enganado por este expediente,  julgando estar a fazer um cerco a uma vila onde reinava a abundância, levantou o cerco e foi-se embora.

Pois foi mesmo aqui nesta Praça que eu, quer passeando debaixo das suas árvores, quer conversando no interior do carro de uma amiga, viria a tomar, meses mais tarde, uma das mais importantes decisões de carácter pessoal e sentimental de toda a minha vida.

Foi, enfim, aqui que descobri a minha heroína, a minha lenda e o rumo a dar à minha vida.

Utilizando talvez uma estratégia idêntica à de Deu-la-deu Martins mas com efeito inverso, ou seja, ao apertar do "cerco" respondemos os dois de igual modo: dando e recebendo, não o pão mas sim o amor, a amizade e o companheirismo que ainda hoje, passados mais de trinta anos, perdura!

domingo, 19 de setembro de 2010

A primeira noite em Monção

Encontrava-me naquele quarto miserável da pensão de 3ª categoria onde me tinha instalado nessa mesma noite. Contemplava com olhar sombrio a noite que perscrutava através da janela sem qualquer estore ou persiana e por onde entrava a luz logo que o sol despontava ao amanhecer. No meio desta solidão escutava, para me abstrair dos meus pensamentos, os rumores e murmúrios da rua e da Praça Deu-la-Deu Martins, sentindo-me cada vez mais só, mais abandonado e muito próximo do desespero.
Reflectia também, e muito, nas razões que me trouxeram até ali. A prepotência! A intolerância! Talvez um dos últimos arrufos do velho fascismo que vingou neste país durante 48 anos! Fora tudo isso personificado no administrador/feitor que zelava, sobretudo e acima de tudo, pelos interesses do patrão que me trouxeram até tão longe e me levaram a enveredar por um estilo de vida que nunca idealizara e, pelo contrário, sempre imaginara detestar.

Tudo acontecera cerca de um mês antes.

Uma acalorada discussão com o meu pai, que era também o administrador da casa agrícola para a qual eu trabalhava há alguns meses, levou a que me despedisse do meu primeiro emprego e a dar um novo rumo à minha vida.
Como Engenheiro Técnico Agrário supervisionava os tratamentos fitossanitários dos pomares e vinhas de várias quintas do nordeste transmontano e da região do Douro, numa área geográfica que abrangia os Concelhos de Vila Flor, Moncorvo e Carrazeda de Ansiães. Era também o responsável pela selecção e aquisição dos produtos químicos necessários para cada estação e para cada espécie, e determinava as datas em que deveriam ser aplicados os tratamentos bem como os trabalhadores que deveriam executar esse trabalho.

Nos primeiros tempos adorei este trabalho para o qual me sentia preparado e vocacionado. De facto, sentia-me verdadeiramente realizado.
Fui, entretanto, estabelecendo com os trabalhadores agrícolas uma relação profissional sadia, aberta e baseada no respeito mútuo. Conheci as suas ideias, as suas preocupações e senti com eles os problemas de quem lida diariamente com a terra. Pude constatar que, apesar da dureza do seu trabalho, eles conseguiam ser solidários uns com os outros e ainda transportavam, no seu dia-a-dia, uma ingenuidade que, muitas vezes, era explorada pelos patrões.
Apercebi-me, entretanto, de que grande parte desses trabalhadores não estavam inscritos na Segurança Social e, em consequência, não ficavam protegidos em situação de necessidade por motivo de doença, invalidez, acidente de trabalho, ou velhice.
Tomei consciência da gravidade dessa situação quando um dia tive que levar ao hospital  uma mulher de sessenta e muitos anos com um pé completamente esfacelado por uma pedra de algumas dezenas de quilos que lhe tinha caído em cima, enquanto realizava o seu trabalhado. Essa trabalhadora para além de ter suportado sozinha as despesas no hospital ainda deixou de ganhar o seu salário nos dias em que esteve internada e nos dias que esteve em casa a recuperar.

Para os trabalhadores inscritos na Segurança Social estava previsto, já nessa época, um subsídio como prestação pecuniária para compensar a perda de remuneração resultante do impedimento temporário para o trabalho por motivo de acidente. Não foi o caso desta trabalhadora!

Não pude ficar indiferente e não contive a minha revolta!
A partir deste episódio tentei convencer os patrões para a necessidade de se cumprir a lei inscrevendo todos os assalariados rurais na Segurança Social. 
Por outro lado e por essa altura eu tinha um horário flexível e não trabalhava aos sábados – o que era considerado uma excentricidade - e só me deslocava a esta ou aquela Quinta conforme entendia ser mais necessário.
Esta maneira de actuar não agradava a meu pai e provocava-lhe alguma confusão enquanto administrador. Tentei explicar-lhe que tudo isso se devia à especificidade das minhas funções e como tal tinha ficado acordado verbalmente entre mim e os patrões. Ele contrapunha de não admitia ser ultrapassado nas suas funções, que quem mandava era ele e que considerava imprescindível e necessário que fosse trabalhar aos sábados. Era uma ordem! Considerava que pelo facto de ser filho do administrador não deveria ter mais privilégios e, pelo contrário, aumentaria a minha responsabilidade e teria que dar o exemplo. Jamais permitiria que eu contribuísse para a desestabilização dos trabalhadores agrícolas.
Gerou-se, a partir daqui, uma situação de conflito de tal modo desconfortável que considerei perfeitamente insustentável manter-me por mais tempo nessas funções. As relações de pai/filho com as de administrador agrícola/técnico agrário misturavam-se, confundiam-se, chocavam-se e tornaram incompatível a continuidade de um dos dois. Em consequência, demiti-me.

Dizia o mestre Agostinho da Silva que “o melhor é não fazermos muitos planos para a vida para não baralharmos os planos que a vida guardou para nós”. E embora não seja um fatalista, confirma-me esta e outras experiências toda a veracidade contida neste singelo pensamento.
O que a vida guardou para mim, contra tudo o que até aí tinha pensado e planeado, é que seria professor a partir daí e provavelmente até ao fim da carreira.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Ainda a viagem de comboio

Concordo com aqueles que dizem que a região do Douro é uma obra-prima da natureza e do esforço humano. Por sua vez o Vale do Douro é sobretudo rio, paisagem grandiosa e história de séculos.

Homens e mulheres desventraram o solo, remexeram o xisto, elevaram filas e filas de socalcos e vinhedos, para que dele nascesse o vinho generoso a que chamam do Porto. Por sua vez o Rei D. José, inspirado pelo Marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo, fez a sua parte criando por lei de 1756 a Região Demarcada do Douro, fazendo dela a mais antiga região demarcada do Mundo e que se estendia ao longo do rio Douro e seus afluentes, de Barqueiros até Barca D’Alva.

Enquanto fazia este percurso, tive ainda tempo de recordar a primeira viagem que por aqui fiz de comboio na companhia do meu tio Félix, quando tinha doze anos de idade e que me levava para a sua casa na cidade do Porto para passar uns dias de férias na companhia dos meus primos Celestino, Evandro e Acácio.

Já nessa altura tive oportunidade de apreciar toda essa beleza, bem como a beleza dos barcos Rabelo que navegavam no Rio Douro mesmo ao lado da linha do comboio e que transportavam as pipas com o saboroso néctar para os grandes armazéns de Vila Nova de Gaia.

Foi, de facto, uma experiência inesquecível. A beleza das arribas que se debruçam sobre o rio em incontáveis socalcos ou patamares, a harmonia das cores que se misturam nessa época do ano, com os diferentes tons de castanho da terra com as diferentes cores e tons das folhas que ainda restavam das videiras.

Recordei também, e com alguma nostalgia, quando na minha infância e na minha aldeia natal - Pinhal do Douro - ouvia lá ao longe, o apito do comboio e o silvo inconfundível das locomotivas a vapor e, sobretudo, o barulho característico emitido pelas rodas de ferro ao rolarem nos carris e nos intervalos entre estes, que nós, miúdos de então, imitávamos cantando de forma cadenciada “pouca terra-pouco pão, pouca terra-pouco pão, pouca terra-pouco pão …”.

Quando cheguei a Ermesinde não pude deixar de ficar impressionado com a azáfama das vendedeiras da regueifa de Valongo e com os seus característicos pregões: “Quem quer regueifa?!”; “Quem compra em Ermesinde, volta a comprar outra vez!”; Quer uma ou duas, freguês?”, “Quem queeeer regueeeeifa?...”

Fiz o transbordo, após mais uma hora de espera, para a linha do Minho e para um comboio ainda mais velho, lento, desconfortável, com bancos de madeira e com algumas janelas avariadas e outras de vidros partidos e fui passando sucessivamente pelas estações ferroviárias de Famalicão, Guimarães, Trofa, Braga, Barcelos, Viana do Castelo, Valença e, finalmente, Monção.

Tive, assim, tempo e oportunidade para ler todas as notícias importantes desse dia.

Recordo-me que, como manchete do Jornal de Notícias, aparecia a notícia de que o gabinete do Primeiro-ministro, Professor Mota Pinto, tomaria posse no dia seguinte; que o Partido Comunista Português iria apresentar na Assembleia da República uma moção de rejeição ao governo e de que este também não iria contar com o apoio tácito do partido socialista, que, pela boca de Mário Soares, considerava o novo elenco como o “mais conservador após o 25 de Abril”.
Outra notícia de primeira página desse dia dava conta do suicídio em massa na Seita “O Templo do Povo”, em que o seu chefe e mais quatrocentos “fiéis” puseram termo à vida.
Também tive tempo para ler o artigo “Cinco portugueses falaram com Delgado na véspera do crime”, que versava um assunto recorrente da época - o assassinato do General Humberto Delgado em Fevereiro de 1965, em Espanha, pela PIDE. Esta Polícia Internacional de Defesa do Estado tinha sido criada por Oliveira Salazar, em 1945, pelo Decreto-Lei nº 35 046, de 22 de Outubro.
Também li que um homem de 28 anos “estrangulou a mulher e atirou-se do sexto andar”, pondo fim trágico ao casamento que só durou mês e meio …; que havia uma manifestação, essa tarde, em Bragança para reivindicar a unidade militar da cidade. Em causa estava a retirada da unidade militar da cidade e a população pretendia extravasar o seu desgosto vindo para as ruas, numa grande manifestação, exigindo que, de uma vez por todas, acabasse o abandono a que a região tinha sido votada …; e que os Correios fecharam deixando os problemas em aberto; e ainda uma outra dizendo que mal ia o Hospital de Barcelos.

A nível internacional, na China aumentavam as críticas a Mão Tsé-Tung.
Em Espanha, aumentava a tensão política com a morte de mais dois polícias numa ataque da ETA.

Sintetizando todas as notícias nacionais, pode dizer-se que, por essa altura, o preço do petróleo subia, a inflação trepava, a dívida externa agravava-se, o Governo decretava impostos e taxas cada vez mais altos, aumentavam os preços dos bens essenciais, por sua vez os trabalhadores exigiam maiores salários e os empresários elevavam custos às mercadorias e serviços.

Temas e circunstâncias bem actuais.

sábado, 11 de setembro de 2010

Monção - onde tudo começou

Novembro de 1978.

Nunca tinha visitado esta Vila minhota pelo que, ao chegar à antiga estação dos caminhos-de-ferro e depois de descer do comboio, foi com a curiosidade natural de um turista que chega a um lugar onde nunca antes tinha estado que procurei ver e reparar em tudo ao meu redor.

Tinha consciência de que Monção era considerada uma das mais bonitas e saudáveis localidades do Alto Minho e foi já na segunda metade do século XX, exactamente no dia 21 de Novembro de 1978, pelas 19 horas, que pisei pela primeira vez esta terra, com a disposição de aqui ficar pelo menos até Julho do ano seguinte. Cheguei completamente anónimo, candidato a professor, a alma cheia de ilusões e os bolsos praticamente vazios.

Entrei, carregado com uma mala de roupa e um saco cheio de livros e um reprodutor de cassetes que o meu avô me tinha oferecido, na Praça Deu-la-deu Martins e olhei à minha volta, sarapantado, curioso e ainda não totalmente refeito das longas horas de uma viagem que foi tanto de bela quanto de sonolenta e monocórdica.

Esta viagem começou bem cedo, em Vila Flor, no sul do nordeste transmontano. Apanhei a camioneta de marca Bedford que circulava desde a década de 50, pintada de amarelo e com uma grande barra pintada de verde florescente que, por sua vez, tinha escrito com letras trabalhadas a preto "Sociedade de Transportes Vila Flor". Levou-me, com pachorrentas paragens em todas as aldeias, até à estação dos caminhos-de-ferro do Tua, onde esperei pacientemente pelo comboio que haveria de me levar até Ermesinde.

Depois de entrar no comboio e de me ter sentado o mais confortavelmente possível num dos bancos de madeira na carruagem do meio e que era classificada de 2ª classe, pude desfrutar desse dia de sol pálido, mas que iluminava a paisagem montanhosa que se ia desdobrando na linha do meu horizonte e esse paraíso terrestre que é o Douro e as suas encostas com socalcos de vinhas recheadas por quintas de casario branco caiado e montanhas salpicadas de igrejas barrocas.

Foram horas de tranquilidade e de prazer a atravessar esta bela região, um espaço único, situado entre vales profundos, protegidos por montanhas, e que é rico em micro-climas como consequência da sua acidentada orografia e com forte influência que exercem as serras do Marão e de Montemuro, que servem de barreira à passagem dos ventos húmidos de oeste e que criam, deste modo, as condições únicas para a produção do famoso Vinho do Porto, um dos poucos produtos de excelência em que Portugal integra a elite mundial mais qualificada.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Nota Introdutória

Agora que já passei do meio século de idade e vou a caminho dos sessenta sinto-me tentado a escrever algumas das passagens da minha ocupação profissional, sobretudo aquelas que foram para mim as mais estimulantes, estranhas e marcantes.

Podia perfeitamente chamar a este Blogue Professor por acaso no ocaso de o ser.

A ideia é ir fazendo de forma simples e retrospectiva uma síntese da minha vida profissional e dos contextos em que se foi desenvolvendo, guardando memórias que, de certa forma, me ajudem, ao procurá-las no meu passado, a reviver os factos e os incidentes que mais me marcaram e que, assim o espero, me servirão de inspiração, para, permanentemente, me tornar um ser humano cada vez melhor.

Escolhi falar da minha ocupação profissional pelas circunstâncias imprevistas que me levaram a adoptá-la, porque me entusiasmei profundamente com o meu trabalho e, sobretudo, porque continuo a amar esta minha profissão, mesmo aceitando que nas actuais condições, não seja viável esperar que este amor perdure e se mantenha por muito mais tempo...

Tal como escreveu Carlos Fuentes também eu acho que: "Sem memória do passado não teríamos futuro. E sem um projecto de futuro perderíamos a memória do passado"