domingo, 19 de setembro de 2010

A primeira noite em Monção

Encontrava-me naquele quarto miserável da pensão de 3ª categoria onde me tinha instalado nessa mesma noite. Contemplava com olhar sombrio a noite que perscrutava através da janela sem qualquer estore ou persiana e por onde entrava a luz logo que o sol despontava ao amanhecer. No meio desta solidão escutava, para me abstrair dos meus pensamentos, os rumores e murmúrios da rua e da Praça Deu-la-Deu Martins, sentindo-me cada vez mais só, mais abandonado e muito próximo do desespero.
Reflectia também, e muito, nas razões que me trouxeram até ali. A prepotência! A intolerância! Talvez um dos últimos arrufos do velho fascismo que vingou neste país durante 48 anos! Fora tudo isso personificado no administrador/feitor que zelava, sobretudo e acima de tudo, pelos interesses do patrão que me trouxeram até tão longe e me levaram a enveredar por um estilo de vida que nunca idealizara e, pelo contrário, sempre imaginara detestar.

Tudo acontecera cerca de um mês antes.

Uma acalorada discussão com o meu pai, que era também o administrador da casa agrícola para a qual eu trabalhava há alguns meses, levou a que me despedisse do meu primeiro emprego e a dar um novo rumo à minha vida.
Como Engenheiro Técnico Agrário supervisionava os tratamentos fitossanitários dos pomares e vinhas de várias quintas do nordeste transmontano e da região do Douro, numa área geográfica que abrangia os Concelhos de Vila Flor, Moncorvo e Carrazeda de Ansiães. Era também o responsável pela selecção e aquisição dos produtos químicos necessários para cada estação e para cada espécie, e determinava as datas em que deveriam ser aplicados os tratamentos bem como os trabalhadores que deveriam executar esse trabalho.

Nos primeiros tempos adorei este trabalho para o qual me sentia preparado e vocacionado. De facto, sentia-me verdadeiramente realizado.
Fui, entretanto, estabelecendo com os trabalhadores agrícolas uma relação profissional sadia, aberta e baseada no respeito mútuo. Conheci as suas ideias, as suas preocupações e senti com eles os problemas de quem lida diariamente com a terra. Pude constatar que, apesar da dureza do seu trabalho, eles conseguiam ser solidários uns com os outros e ainda transportavam, no seu dia-a-dia, uma ingenuidade que, muitas vezes, era explorada pelos patrões.
Apercebi-me, entretanto, de que grande parte desses trabalhadores não estavam inscritos na Segurança Social e, em consequência, não ficavam protegidos em situação de necessidade por motivo de doença, invalidez, acidente de trabalho, ou velhice.
Tomei consciência da gravidade dessa situação quando um dia tive que levar ao hospital  uma mulher de sessenta e muitos anos com um pé completamente esfacelado por uma pedra de algumas dezenas de quilos que lhe tinha caído em cima, enquanto realizava o seu trabalhado. Essa trabalhadora para além de ter suportado sozinha as despesas no hospital ainda deixou de ganhar o seu salário nos dias em que esteve internada e nos dias que esteve em casa a recuperar.

Para os trabalhadores inscritos na Segurança Social estava previsto, já nessa época, um subsídio como prestação pecuniária para compensar a perda de remuneração resultante do impedimento temporário para o trabalho por motivo de acidente. Não foi o caso desta trabalhadora!

Não pude ficar indiferente e não contive a minha revolta!
A partir deste episódio tentei convencer os patrões para a necessidade de se cumprir a lei inscrevendo todos os assalariados rurais na Segurança Social. 
Por outro lado e por essa altura eu tinha um horário flexível e não trabalhava aos sábados – o que era considerado uma excentricidade - e só me deslocava a esta ou aquela Quinta conforme entendia ser mais necessário.
Esta maneira de actuar não agradava a meu pai e provocava-lhe alguma confusão enquanto administrador. Tentei explicar-lhe que tudo isso se devia à especificidade das minhas funções e como tal tinha ficado acordado verbalmente entre mim e os patrões. Ele contrapunha de não admitia ser ultrapassado nas suas funções, que quem mandava era ele e que considerava imprescindível e necessário que fosse trabalhar aos sábados. Era uma ordem! Considerava que pelo facto de ser filho do administrador não deveria ter mais privilégios e, pelo contrário, aumentaria a minha responsabilidade e teria que dar o exemplo. Jamais permitiria que eu contribuísse para a desestabilização dos trabalhadores agrícolas.
Gerou-se, a partir daqui, uma situação de conflito de tal modo desconfortável que considerei perfeitamente insustentável manter-me por mais tempo nessas funções. As relações de pai/filho com as de administrador agrícola/técnico agrário misturavam-se, confundiam-se, chocavam-se e tornaram incompatível a continuidade de um dos dois. Em consequência, demiti-me.

Dizia o mestre Agostinho da Silva que “o melhor é não fazermos muitos planos para a vida para não baralharmos os planos que a vida guardou para nós”. E embora não seja um fatalista, confirma-me esta e outras experiências toda a veracidade contida neste singelo pensamento.
O que a vida guardou para mim, contra tudo o que até aí tinha pensado e planeado, é que seria professor a partir daí e provavelmente até ao fim da carreira.

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