sábado, 30 de outubro de 2010

Continuando com uma incursão pelo passado, em Carrazeda de Ansiães

Depois de subir as escadas e de ter entrado no velho edifício, percorri um pequeno corredor de soalho antigo, que abanava e rangia a cada passo, até à porta da sala de aulas do 8º B.
A sala era rectangular, de soalho irregular em madeira mal tratada e com buracos. O tecto, em ripas de madeira muito finas, deixava entrever alguns raios de luz que trespassavam através das telhas muitas delas já partidas e por onde passava também a chuva e mesmo a neve, como viria a acontecer ainda nesse mesmo Inverno. As janelas e as portas enormes, de duas folhas e com vestígios estaladiços que se soltavam de tinta plástica verde, já não conseguiam vedar completamente o ar e o frio. As carteiras dos alunos eram antigas, daquelas que ainda tinham um orifício onde se colocavam os tinteiros e já não se viam desde o tempo em que frequentei o primeiro ciclo.
Enquanto esperava pela entrada dos alunos, já sentado na ampla secretária onde tinha colocado a pasta e o livro de ponto, perguntei-me se não teria sido aqui mesmo nesta sala que o meu pai, meu avô e os meus tios-avós foram julgados há umas décadas atrás.
Olhava para as paredes caiadas de branco mas sujas pela água que escorria do telhado sempre que chovia ou nevava um pouco mais. Um sentimento de inquietude e de revolta invadiu-me nesse momento. Incapaz de me concentrar naquilo que iria dizer aos meus alunos, dividido entre o passado e o presente, senti de forma consciente e pela primeira vez, que ter crescido num ambiente de conflitos e no meio de uma guerra familiar, para além de me ter provocado marcas que dificilmente se poderiam apagar ou desvanecer, me tinha também privado do natural afecto, carinho e atenção dos meus pais, tão necessários naquela idade para um crescimento harmonioso e saudável.
Bruno Bettelheim, autor de uma teoria revolucionária sobre a formação intelectual e do carácter do indivíduo, dizia: “de um homem, basta que me dêem os primeiros sete anos de vida, está tudo lá, podem ficar com o resto”.
Apesar de não ser um grande apologista desta teoria porque entendo que em todas as infâncias há sempre um momento em que uma porta se abre e deixa entrar o futuro, naqueles instantes de espera vacilei, tive dúvidas e hesitei muito. A minha avó “veio” em meu socorro. Lembrei-me dela e de todo o apoio e carinho que me deu nessa altura, apesar da sua doença tão cruel e que tanto a fez sofrer até ao fim. Ela foi sem dúvida o meu porto de abrigo e a porta que me abriu o futuro.
E a vida que segui, através dessa porta que minha avó abriu, mostrou-me que o homem é um ser permanentemente inacabado, em evolução contínua, em processo contínuo de aprendizagem, a aprender e até a desaprender.
Aprendi também a desenvolver, a partir dessa altura, uma consciência prematura numa alma impaciente e sempre à procura de mim, da minha identidade.
Nesta procura constante levo até ao presente e levarei o resto dos meus dias a reconstruir-me permanentemente como pessoa. De que modo? Lendo, escrevendo, viajando, trabalhando, acreditando, apostando em mim, na família, na seriedade, na interioridade e no contacto do conteúdo secreto dos meus sentimentos.
Na prática procurei sempre aproveitar a experiência adquirida no passado para melhor viver e compreender o presente tendo sempre como princípio adquirido de que nada será sem o que foi anteriormente e só continuará a ser com o que vai acontecendo e sendo.
Permanentemente.
Nunca acreditei que deveríamos esquecer o passado, ou não lhe dar a devida importância, para podermos construir uma vida completamente nova. Pelo contrário, acreditei sempre que a nossa história e a história dos nossos pais e dos nossos avós nunca deveria ser enterrada sem que delas não rezasse memória nenhuma. Ignorar o passado não será perder ou hipotecar o futuro?
Acreditando, ou dando como aceite, de que o passado tem tentáculos bem longos e acaba sempre por vir cobrar o seu quinhão prefiro ver-me de outra forma centrando-me na ideia de que cada um de nós é feito de instantes somados e que as experiências de hoje são a fonte do futuro.
Embrenhado nestes pensamentos e recordando que este Concelho era, ainda nessa época, um dos que tinha as taxas mais elevadas em agressividade e homicídios do País, mal dei conta que a sala estava já completamente cheia com os vinte e oito alunos que constituíam essa turma.
Segue-se a apresentação do professor. Apresentação dos alunos. Um. E outro. Tu. Quem!? De onde!? Como se chamava o teu avô? Sim!? Perguntei, ouvi as respostas e fiquei espantado!... Como determinados acontecimentos tornam a vida curiosa e imprevisível!
A aluna era neta do meu tio-avô, o homem que esfaqueou o meu avô e levou um tiro de meu pai. Ainda éramos parentes! E estávamos agora os dois nesta mesma sala!
Essa prima revelar-se-ia uma aluna simpática, educada e aplicada como viria a demonstrar ao longo de todo esse ano lectivo.
Estas coincidências fizeram-me lembrar Deepak Chopra quando disse: “As coincidências não são acasos são sinais do universo que nos podem conduzir ao nosso verdadeiro destino”.

Sem comentários:

Enviar um comentário