quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Vila Flor e o aluno Peixoto


Passados doze anos cá estávamos nós, de novo, neste mesmo edifício, aquele que me castigou dessa forma tão injusta e cruel e eu, agora mais maduro e cheio de vontade de ensinar e aprender.
Quando o vi pela primeira vez recordei-me destes e de outros acontecimentos também ilustrativos da forma como se (des)educavam os alunos dessa época.
Apesar de tudo, a nossa relação profissional acabou por ser positiva.
Após termos ultrapassado alguns constrangimentos iniciais tornámo-nos cooperantes um com o outro. Eu aproveitando os seus conhecimentos científicos em algumas áreas em que ele era, de facto,  muito bom e ainda alguns aspectos da sua experiência que devidamente enquadrados com a minha postura e atitude pedagógica e profissional se tornaram interessantes para o desenvolvimento da minha actividade. Ele servindo-se da minha juventude, dinâmica e vontade de cooperar com toda a comunidade educativa,  substituindo-o em algumas tarefas e funções educativas que já lhe custavam a executar, nomeadamente a fazer as actas das reuniões em que ele, sendo o secretário, teria de as redigir e a transcrever para as pautas as classificações e as avaliações qualitativas dos alunos das turmas que tínhamos em comum.
O Padre Dimas Fais, quer pelas mudanças ocorridas após 25 de Abril de 1974 e que tiveram impacto em toda a sociedade portuguesa, quer devido à sua avançada idade estava diferente. Ou ... agia de forma diferente!

Ainda durante este período (1980-83), numa aula de Biologia, estava a falar da fisiologia do aparelho urinário de alguns mamíferos aos alunos de uma turma de 9º ano, quando o Peixoto, aluno interessado e com forte personalidade, me perguntou qual o símbolo químico do ácido hipúrico.
- Pois … boa pergunta! Não sei! - disse eu. Nem tenho que saber.  A fórmula estrutural é bastante complexa e não tem muito interesse em decorá-la.
O importante é que vocês aprendam que este é um composto formado pela conjugação do ácido benzóico e glicina, que ocorre na urina de animais herbívoros, que é eliminado na urina e que representa uma forma não tóxica de eliminação.  
Na aula seguinte, quando me preparava para clarificar com mais rigor a questão colocada pelo Peixoto este vira-se para mim e diz:
- Professor, afinal o ácido hipúrico não existe!
- Como!? Não existe? Porque dizes isso?
- Foi a professora de Físico-Química. Perguntei-lhe ontem pelo símbolo químico e ela disse que o professor deve estar equivocado.
- Quem deve estar equivocado és tu! A professora provavelmente não disse que o ácido não existe. Tu, se calhar, interpretaste mal a professora. Disse eu sem qualquer convicção.
- Não, não, responderam em simultâneo mais dois ou três alunos, ela disse mesmo que era o professor que estava enganado. Que nunca tinha ouvido falar desse ácido. E se nunca tinha ouvido falar é porque não existia!
- Aí sim!? Então abram, por favor, o vosso manual na página 98. Agora o Peixoto vai ler os dois últimos parágrafos.
Enquanto o Peixoto lia uma parte do texto onde era explicado como se formava o dito ácido, pensei que estava metido numa situação algo complicada em termos éticos e profissionais. Os alunos iriam perceber que um dos professores estava mal preparado e, naturalmente, que iria ficar mal visto perante a turma.
O futuro ir-me-ia, infelizmente, dar razão. A partir desse dia os alunos desta turma e, especialmente o Peixoto, tornaram-se muito indisciplinados nas aulas de Físico-Química.
A professora perdeu o controlo da turma e, em consequência, começou a marcar faltas disciplinares. Uma dessas faltas deu origem a um processo disciplinar. No respectivo Conselho de turma disciplinar constatou-se que o aluno apenas tinha comportamentos condenáveis nas aulas de Físico-química. Todos os outros professores referiram que o aluno era bem comportado, interessado e com aproveitamento escolar superior à média da turma.
No entanto, apesar dessas atenuantes, a falta foi considerada grave e, em consequência, foi proposta e aceite pela maioria dos docentes uma pena de suspensão de dois dias. Eu votei contra a suspensão do aluno e sugeri que lhe fosse aplicada uma repreensão verbal pelo presidente do Conselho Directivo. Esta sugestão foi recusada por todos os professores do Conselho de Turma excepto pelo … Padre Cassiano Dimas Fais – professor de Educação Moral Religiosa e Católica!

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